Ninguém pode voltar atrás no que já sabe. Eu te entendo por que eu também tive um diário lido. Na verdade, uma caixa com uns 15 cadernos juvenis manuscritos que ficavam esquecidos na casa de minha mãe. Pensamentos, poemas e toda a desimportância de uma adolescência banal dentro de uma caixa lacrada que eu nem lembrava que existia.
Nos últimos anos, eu já morei em tantos lugares e, uma vez, já adulta, quando voltei de uma viagem de trabalho, fui visitar minha mãe e a antiga funcionária estava colocando a mesa do almoço, como fazia há 20 anos. Eu estava assistindo tv. Ela era fechada e quase não falava comigo, foi colocando a tigela de feijão na mesa e levantou o olhar, me observando por um segundo antes de sair. Um segundo. Como se notasse a minha presença ali pela primeira vez.
Sem tirar os olhos da tv, eu soube. Simplesmente soube. Num lampejo: a velha caixa de cadernos. Deduzi que, se a caixa ainda existisse, estaria no quarto dela e com o lacre violado. Conferi depois. E estava.
Não sei explicar aquele desconforto. Um constrangimento mudo. Nunca fiz nada a respeito. Até me arrependo, a pessoa que sou hoje teria criado uma inquisição fulminante capaz de arrancar confissões das paredes, mas eu ainda era uma boba diplomática e não toquei no assunto ponderando que, bem, ao menos não havia nada escrito ali que fosse importante.
Ou havia. Levando em conta que fui repentinamente notada por alguém que, durante 20 anos, não me enxergou. Mas, neste ponto, o meu barraco hipotético já estaria tecnicamente vencido porque não se pode voltar atrás no que já se viu. Haveria uma maneira dela “desler” e acabar com o meu desconforto? Não. O desconforto dela durante uma suposta confissão me ajudaria em algo? Não. Era um ponto sem retorno.
Um diário lido é uma linha ultrapassada e existem tantas outras. Perdidos sob as prateleiras de tralha das relações humanas, há vasos chineses delicadíssimos, perto deles a gente até respira com cuidado.
A gente não pode voltar atrás no que já sabe. Mesmo que queira, mesmo que se arrependa, não desfaz do que já viu. Do que ouviu. Do que leu. São os crimes sem possibilidade de vingança porque não existe compensação viável, um olhar suspenso por um segundo entrega o delito do outro, restando a ambos recuar em silêncio e catar do chão a dignidade que lhes for possível. Cada um com seu constrangimento específico. Na mais espinhosa microfísica do desconforto. E ela não tem retorno.
Sobre a bancada, há um vidro de perfume e um frasco de shampoo, já faz um tempo que estão ali. Deitada na cama, olho para a porta aberta do banheiro e posso ver os produtos de sempre sobre a pia e esse é o meu momento presente. Um vidro com metade do perfume e uma embalagem plástica de shampoo.
Dizem que, neste século, o tempo médio de vida de um ser humano é de 80 anos. Nesta lógica, acredito que eu estou, hoje, mais ou menos na metade do meu tempo. Talvez eu tenha oportunidade de aproveitar o meu perfume até a última gota, talvez algum imprevisto faça o vidro cair por acidente, perfumando inutilmente o chão do banheiro, o vidro é tão quebrável. Diferente da embalagem de shampoo, que é plástica. Hoje, o mundo possui mais de oito bilhões de habitantes, que terão seus filhos e netos e todos morrerão antes desta embalagem deixar de existir. O plástico, em sua banalidade barata, é quase eterno, é um semideus. Já a a minha existência é breve e encontra-se quase na sua metade, sou tão mais frágil que este frasco de shampoo.
Já são sete da manhã. Minha geração, como todas as outras, possui preocupações próprias: a minha está assombrada com a gestão do tempo. Dizem que a melancolia seria o excesso de passado e a ansiedade seria o excesso de futuro e que o nosso desafio é viver o momento presente. Deitada, me pergunto o que o instante de agora tem para me oferecer: a visão da bancada do banheiro. Respiro fundo e pisco os olhos, como só um animal vivo poderia fazer. A bancada e seus objetos seguem imóveis. Existir, mesmo que seja por mil anos, é diferente de estar vivo. Não invejo mais a perenidade da embalagem de shampoo.
Deitada, tento me conectar ao instante sem pensar em nada de antes ou de depois. É difícil. Olho para a porta do banheiro como alguém que se deslocou para o futuro e se lembra de uma época, de um quarto, de uma manhã distante em que ficou observando uma bancada de banheiro. Depois, me desloco para o passado, reprisando dias aleatórios, fixo em um, meses atrás, em que estava sozinha num consultório médico. Após exames de rotina com bons resultados, a médica encerrou a consulta e perguntou: como é a sensação de ir embora sabendo que você não está doente? Eu fiquei sem entender e ela insistiu: os pacientes diagnosticados costumam narrar os impactos da descoberta da doença, seus pensamentos e emoções. Mas não sei nada sobre os outros: como é, para um paciente, receber a notícia de que continuará vivo? E eu não soube responder.
Tento me concentrar no agora, o que o dia de hoje pode me oferecer? A água quente do banho, a água fria da pia. O café doce, o pão salgado. Cheiro, toque, som – privilégios de um animal vivo. Pisco os olhos, vejo o outro lado do quarto, a janela aberta. Numa fachada vizinha há uma estátua de pedra – simétrica, perfeita. Ela não está envelhecendo e jamais ficará doente. Mas também jamais sairá dali.
Hoje, eu gosto de ser quem eu sou, o animal que respira. Que caminha, envelhece e morre. Não almejo a perfeição da pedra, nem a imortalidade do plástico. Talvez eu deseje apenas mais tempo, tempo suficiente para, um dia, ser a pessoa do futuro que recorda uma época, lembra de um quarto, de uma manhã distante em que ficou deitada sentindo uma inexplicável satisfação em poder respirar. Sem melancolia, sem ansiedade: completamente presente. Da janela, vejo a estátua que vai durar mais do que eu, penso no planeta, que vai continuar sem mim. E mesmo a bancada do banheiro, que é de cerâmica e eu não sei quanto tempo vai durar, ela me parece perfeitamente adequada às necessidades de hoje. E isso basta.
O que o momento presente tem para oferecer me agrada. É bom ainda estar por aqui.
Acho que Salvador, Lisboa e Havana têm algo em comum: uma certa austeridade histórica, tipo um charme decadente. São cidades eternas. Enquanto outras metrópoles seguem tendências, disputam vitrines, agitam-se em museus de grandes novidades, estas varrem a calçada sem pressa. Estendem o varal. Não precisam inventar nada.
Elas são o antônimo da Flórida, de Florianópolis ou de Dubai, onde tudo cheira a plástico, whey e dinheiro. A maior roda gigante do mundo, o maior arranha-céu, a maior praia artificial – quem quer ir a uma praia de mentira? Parecem jovens aflitos tentando impressionar.
Nas cidades eternas tudo é meio antigo e meio gasto e tão orgulhoso de si mesmo. Estão do lado oposto da moda. O verdadeiro ponto turístico é observar como as pessoas dali vivem. É sentar na calçada e não querer mais ir embora.
Eu nasci numa cidade atemporal e acho que nunca me contentaria com menos. Há lugares que estão ansiosos por se tornarem algo. E há cidades que, há séculos, já chegaram aonde queriam estar.
E olha que são apenas 476 anos. Feliz eternidade para você, Salvador
Perdoem-me a heresia da comparação, mas hoje eu lembrei de George Orwell.
Durante a Guerra Civil Espanhola, o ainda jovem Orwell alistou-se voluntariamente para lutar contra o fascismo. Foi enviado para os arredores da cidade de Huesca, vivendo numa trincheira feita de lama e detritos. Nas ofensivas, o general costumava apontar para a muralha e gritar: amanhã tomaremos café em Huesca! O que nunca aconteceu, visto que eles nunca conseguiram tomar a cidade, mas, para Orwell, foi aquela promessa de banquete que o manteve vivo e permitiu sua volta para casa.
Note que o general não prometeu medalhas e condecorações, não afiançou que iria erigir um monumento com o nome de cada soldado. Ele prometeu bolos e croissants numa cidade a 900 metros deles. Cabe reconhecer, não era um projeto descabido.
Nestes últimos anos, em que o fantasma do fascismo voltou a assombrar, noto que cada um adotou sua própria estratégia de sobrevivência e eu acho que encontrei a minha. Fugir.
Nem que seja por algumas semanas.
Outro dia, no Airbnb, eu vi a imagem de um lugar. Uma cabana de madeira da década de trinta. Piano e lareira, renas e ovelhas, um desses cenários que ilustrariam o paraíso em folhetos evangélicos, mas com um acréscimo: ela estava rodeada por montanhas de neve de onde despencavam SETENTA E DUAS cachoeiras. E a água se dissipava antes de tocar o chão, criando uma poeira d’água que formava um ARCO-ÍRIS PERENE.
Uma das imagens mais idílicas que eu já vi na vida, nem os protestantes imaginaram algo tão celestial.
No site de hospedagem, achei graça dos comentários dos hóspedes anteriores. Depois de pernoitarem naquele pedaço do Olimpo, lamentavam não haver lá um roupão de banho ou um cinzeiro ou qualquer outra banalidade que me pareceria irrelevante quando se está habitando o eldorado platinado. Se aquele oásis não agradou a todos, o quê neste mundo agradaria??
Por fim, para minha surpresa, a casa me era acessível. Eu poderia alugá-la, se quisesse. Eu não esperava por isso. Tive um momento de hesitação, como alguém que recebe mais do que deveria aceitar. Tudo naquela paisagem era esplendoroso demais para uma vida prosaica demais. Eu fiquei mesmo hesitante.
Mas lembrei de Orwell. E, sem nenhum tipo de planejamento, aluguei a casa das 72 cachoeiras.
Dentro ou fora da guerra civil, soldados precisam de um sonho para viver. Amanhã eu vou tomar café em Huesca e seja o que Deus quiser.
Perguntei se ela não pensava em morar de novo no Brasil, mas ela disse que não. Que ela até queria muito, mas que ser uma estrangeira com cara de gringa andando por Salvador chamava atenção de um jeito insuportável. Me fez lembrar Lispector, no conto Tentação: “Ser ruivo numa terra de morenos era uma revolta involuntária”. Me fez lembrar como é uma merda não se sentir incluído.
A gente havia se conhecido anos antes, quando ela ainda morava em Salvador, num apartamento sem móveis onde estava acontecendo uma típica festa estranha com gente esquisita. Nem me perguntem como fui parar lá. Eu não conhecia ninguém e sentei no chão ao lado de uma figura com sotaque francês que me ofereceu – um drink? uma cerveja? um cigarro? – uma flor de papel crepom para colocar no cabelo e foi falando comigo como se tivéssemos continuando uma conversa anterior – pois a aula de percussão foi mesmo incrível, mas você também não acha super difícil tocar bongô? – Olha, eu acho quase impossível.
Dias depois, nesta cidade de três milhões de habitantes, nos encontramos por acaso dentro de um ônibus lotado e eu lhe estendi o meu número de telefone anotado:
– Bora marcar num café para terminar aquele papo, sábado estava impossível conversar naquele lugar aleatório.
– Aquele lugar aleatório era a minha casa kkkkk e, sim, a gente pode se encontrar de novo!
E nos encontramos. No bar, depois da faculdade. Em outras festas estranhas. Nos albergues lotados, cachoeiras, a gente tem foto em todo lugar. Quando ela desistiu de morar no Brasil e voltou para a Europa, foi minha vez de emigrar para um apartamento sem móveis do outro lado do mundo. Ela foi me visitar e ficou dormindo num colchão na sala vazia. Acordava cedo, fazia café e ficava na janela falando de um jeito filosófico:
– Você precisa mudar de endereço…
– Como assim? Esse apartamento é enorme, tem fogão eletrônico!
– Não tem paisagem na janela. Quando você lembrar do país em que viveu, sua primeira lembrança não vai ser a dos pontos turísticos, vai ser da paisagem da sua janela.
Eu olhei pela janela. E entendi do que ela estava falando. Um mês depois, eu já estava morando em outro lugar.
– O que achou do meu endereço novo?
– Menos aleatório.
Uma vez, quando a gente andava pelas ruas de Lisboa de madrugada, ela implicou que eu precisava conhecer Paris.
– Soube que Paris fede e é cheia de gente mal educada.
– Isso é bem verdade. Mas é muito perto daqui, você precisa ir.
– Fazer o quê lá??
– Talvez para poder falar mal com mais propriedade. Existem experiências nessa vida que são emblemáticas demais para a gente nem experimentar.
E eu fui a Paris uma vez, depois fui de novo. Nunca deixei de falar mal, mas tinha muito mais elementos para dissertar o meu descontentamento. Detestava a capital da França dessa maneira apaixonada com que a gente odeia algo que é grandioso demais para ser ignorado. Era um prazer descrever cada rua, cada cafeteria, cada esquina de marquises vermelhas e o quanto elas eram insuportáveis, eu tinha material para reclamar uma vida inteira. Voltei uma terceira vez só para ter mais argumento.
Ironicamente, a cidade a quem eu devotava os meus melhores elogios me decepcionou. A volta para Salvador foi de uma desolação kafkaniana, foi como adentrar uma vila abandonada. As portas estavam emocionalmente fechadas, as ruas desertas, não havia mais nada. Quando Gaelle me ligava falando da sua vontade de voltar para a Bahia, eu falava da minha vontade de ir embora da Bahia. Depois, a gente ponderava. Havia isso de não nos destacar, o privilégio de ser mais um. Ela reconhecia que era melhor para ela estar na França e eu reconhecia que era melhor para mim estar no Brasil. A gente já sabia o quanto era uma merda não se sentir incluído.
Agora, ela me ajudava com as tarefas de correspondente, eu enviava as revistas pelo correio para ela praticar o português. E eu imaginava a gente envelhecendo nos dois lados do Atlântico, espelhos invertidos, pessoas que tinham o mundo nas mãos, mas que optaram pelas próprias aldeias. Nunca soube ao certo se isso seria um final feliz. Na verdade, nunca me ocorreu que poderia ser um final.
Hoje, eu estou de coração partido. Como não sentia há alguns anos, as portas fechadas, as ruas desertas. Ninguém do outro lado da linha. Com aquela urgência de viver que só uma morte próxima nos trás. Existem experiências nessa vida que são emblemáticas demais para a gente não experimentar – mesmo que sejam breves, mesmo que não durem para sempre. São vivências tão grandiosas que não podem ser ignoradas. Nunca foi sobre Paris, sempre foi sobre a presença dela.
Hoje, eu fiquei mais só deste lado do Atlântico. Sozinha nesta festa estranha. O mundo inteiro é um lugar aleatório. Sem nenhuma paisagem na janela.
Encontrei-o morto na sala. Tranquei a porta antes que as crianças entrassem, cobri com um pano, enxuguei a poça de sangue. O gato estava duro, os olhos vidrados, devia estar há uns 3 dias ali na sala do sítio, coloquei o corpo dentro de um saco plástico. As malas ainda estavam no carro, duas da tarde, eu de pé com aquilo na mão sem saber que destino dar. Não costumo encontrar cadáveres dentro de casa, não tenho intimidade com o protocolo.
Aquele era um bichano que aparecia no sítio em noites de sábado. Ele ficava arranhando a porta, exigia leite de um jeito orgulhoso, as crianças o alimentavam e ele sumia logo depois. Me lembrava os austeros gatos egípcios e batizei-o de Pedante, mas ele não era meu. Personalidades assim nunca têm um dono. Será que passou mal? Morreu de frio? Jamais saberei o destino do bichano.
Saí da casa pelos fundos e fui abrindo caminho no mato com o embrulho. Jogar fora ou enterrar? Enterrar seria mais respeitoso e evitaria que os urubus ficassem rondando a casa. A voz das crianças jogando bola com o pai ao longe, talvez desse tempo de terminar o serviço sem ninguém perceber. Eu nunca havia usado uma pá. Também não costumo enterrar cadáveres no jardim, outra vez sem intimidade com o protocolo.
Pedante estava pesando dentro do saco, dizem que corpos mortos sempre parecem pesar mais. E parecem maiores. E, principalmente, nunca deixam dúvidas. Olhando de longe você sabe quando um corpo está sem vida, acho que, nos filmes, os personagens sacolejam o defunto tentando reanimá-lo apenas para dar mais ênfase ao drama, obviamente sabem que não há mais nada ali. Era como carregar um boneco. E como era difícil fazer uma cova. Não entendia a expressão – “confio muito em fulano, seria quem eu chamaria para enterrar um cadáver comigo” – afinal, por que alguém chamaria outra pessoa para um programa tão macabro? Agora, me parece claro que perfurar uma cova sozinho é quase impossível, você cava, deixa a camisa ensopada e não consegue abrir um palmo de terra. Imagine sete. Fiquei preocupada de algum trabalhador da fazenda vizinha me vir ali e achar estranho, sei lá, uma mulher de cabelos longos e vestido cor de rosa abrindo uma cova perto do rio merecia uma legenda do Nelson Rodrigues. Pedante estava rígido com as pernas esticadas, não cabia no buraco. Era preciso cavar mais. Os urubus começaram a rondar. Eu precisava terminar aquilo.
Voltei com o rosto coberto de terra e sangue seco, tomei um banho – casa vazia, chão limpo, cheiro de água sanitária, fiquei lendo uma revista na varanda. Ninguém daria conta do que houve, economizaríamos lágrimas e traumas infantis. Fiquei refletindo sobre porque raios eu fui enterrar o gato. Não precisava. Eu podia tê-lo jogado no mato ou no rio, não sei o quê em mim precisa encerrar os assuntos de maneira definitiva, a ideia de deixar o corpo no rio era abandonar a questão inacabada, eu encontrei o gato morto, então era eu quem deveria sepultá-lo no meu próprio terreno, era minha responsabilidade. Ao menos, depois de morto, Pedante era meu.
Fim de tarde. As meninas chegaram eufóricas do jogo, arrumaram-se para o jantar, meu esposo fez uma pizza e projetou um filme no muro. Ninguém desconfiou de nada. A noite correu leve com histórias sobre pipas, bicicletas e baleias jubarte que eram do tamanho de um ônibus, com os insetos zunindo à volta da fogueira e árvores crescendo à volta do lago. Estava tudo sob controle. Naturalmente cansados, todos foram se recolhendo para dormir, eu fui trancando as janelas, músculos distendendo-se aliviados. Enfim. Antes de apagar todas as luzes, ainda pude ouvir as últimas conversas no corredor:
– Filha, hoje é noite de sábado, não vai deixar leite para o Pedante?
Hoje, há exatos dez anos atrás, eu estava na África, no deserto do Saara, na fronteira com a Mauritânia. A gente havia cruzado o Marrocos de jipe durante o dia e, quando a estrada acabou, continuamos o percurso de camelo. Cruzar a divisa de um país para o outro no meio da madrugada sobre um camelo já seria uma aventura por si só, mas não era só isso. O Saara estava em guerra.
Eu precisava de fotografias e depoimentos de como estavam as comunidades. Pessoalmente, acredito muito nos movimentos de descolonização, inclusive também apoiava o reconhecimento do Saara Ocidental enquanto país soberano, depois de anos de domínio espanhol e marroquino. Esse é um conflito antigo e a independência plena não aconteceu até hoje, mas em 26 de fevereiro de 2010, embalados pela Primavera Árabe, os confrontos recomeçaram e duraram até maio de 2011. Neste período, estive pelas mediações três vezes.
Naquela noite específica, os beduínos montaram uma tenda e ascenderam uma fogueira. O céu estava tão incrivelmente estrelado que me fez elaborar várias teorias aleatórias – tipo, deve ser por isso que a estrela e a lua são símbolos otomanos, observe que os países pós-otomanos estão em torno de desertos e quase todos têm estrelas em suas bandeiras (Marrocos, Mauritânia, Turquia, Paquistão, Jordânia, Argélia etc.) por que a noite num deserto é realmente cinematográfica, olha para isso, está tudo explicado.
Os beduínos estavam cantando e dançando à volta da fogueira, depois serviram um prato de cordeiro com cuscuz em quantidade obviamente insuficiente para doze pessoas e eu fiquei esperando para perguntar aonde a gente iria dormir. Era ali mesmo, na areia. Todos juntos. Estávamos no auge do inverno e, se os doze desconhecidos não dormissem fortemente abraçados, não sobreviveriam ao vento e ao frio. Apenas.
Foi uma noite insana.
A temperatura caiu de repente e eu não conseguia sentir nem os meus dentes. Não tenho ideia de quem eram as pessoas que eu abraçava com vigor e que me impediram de morrer de hipotermia. Eu estava usando todas as minhas roupas sobrepostas e, depois que todos dormiram, como se não houvesse problemas o bastante, eu precisei me levantar para procurar um banheiro. Não preciso dizer que não havia banheiro. Fui me desvencilhando de braços e pernas de estranhos até conseguir ficar de pé. Aí eu olhei em volta.
Eu nunca tinha visto nada parecido.
Uma madrugada clara e brilhante. Extraordinária. A noite no deserto não era de céu negro como a noite na cidade, era de um azul forte com manchas roxas, um emaranhado de galáxias. A lua cheia sobre aquele mar de dunas por todos os lados, como se grandes ondas tivessem virado areia um segundo antes de quebrarem na praia. Um enorme vácuo, só o vento forte indo do oriente para o ocidente, um silêncio de tudo. Se você se concentrasse por um minuto, poderia ouvir a respiração de Deus.
Depois que eu voltei a deitar, fiquei com os olhos abertos para o céu. Entregue no silêncio do vazio absoluto. Como James Joice, “Estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.
Levantamos antes do nascer do sol para desmontar a tenda, subir nos camelos e seguir para Ouarzazate, uma cidade feita de barro. No caminho, eu pedi para descer, queria tirar uma foto do grupo. Eu não contava que a areia estava batendo na minha coxa e que eu teria que ir nadando naquele mar de areia para acompanhar a fila de camelos que seguia sem nenhuma dificuldade. Tinha que ser rápida. Foi aí que fiz essa foto que está, hoje, ampliada num quadro da minha sala. Tanta coisa aconteceu nesta viagem, mas essa é a melhor recordação que eu trouxe de lá. Eu adoro essa foto.
Por coincidência, dez anos depois, eu estou exatamente diante deste quadro, trabalhando. O quadro está dentro de um apartamento comum, dentro de uma vida padrão. E eu estou escrevendo um artigo sobre um outro país africano, também em processo de descolonização – este outro, felizmente, num estágio mais avançado. Às vezes, eu interrompo o trabalho para levar o lixo lá fora. Ou para lavar os pratos. Ou para atender o interfone. E o porteiro que me interfona não imagina que a senhora do 802 estava na Guerra do Saara durante a Primavera Árabe.
Dizem que, depois que os primeiros astronautas voltaram da Lua, eles entraram em depressão até o fim da vida. Como se, depois de terem experimentado um evento tão extraordinário, a existência rotineira tivesse deixado de fazer sentido para eles. E eu entendo. Mesmo. A verdade é que eu vivenciei experiências incríveis durante quinze anos e, depois, fiz escolhas incompatíveis com aquele formato de vida. Eu deixei o trabalho de campo em 2016. Entendo que tudo o que eu produzo hoje, daqui do computador, também é importante e necessário. Que há muitas formas de contribuir com a engrenagem de um planeta em rede. E que ninguém pode ter tudo nessa vida. Eu sei.
Eu compreendo perfeitamente tudo isso.
Mas ainda há as noites de lua. E ainda há esse quadro pendurado na parede.
As pessoas se sentem privilegiadas pela presença dele. Com um faixo de luz que iluminasse a sala de repente, a sua chegada quase sempre é anunciada pelos comentários que vão abrindo portas antecipadamente. Dessas personalidades excêntricas que parecem colocar o resto do mundo em marca d’água, cooptando adeptos para um modo de ver a vida aberto a infinitas possibilidades – que, se ainda não se concretizaram, seria apenas por uma questão de tempo ou por causa dos invejosos que não podem suportar as qualidades que você certamente possui. Perto dele, todos são gênios incompreendidos, mentes superiores prestes a serem aclamadas pelo reconhecimento inevitável.
Todos sentem prazer no sentido grandioso que ele traz para suas vidas e acabam tornando-se dependentes disso, como de uma droga poderosa capaz de lhes fazer levantar da cama todos os dias. E, em troca, cedem aos seus caprichos mais desbaratados e lhe perdoam faltas imperdoáveis, começando aí um ciclo doloroso. Por que ele podia fazer alguém sentir-se extraordinário por algumas horas, mas, no dia seguinte, lembraria vagamente o nome do interlocutor. Enquanto restaria ao outro esforçar-se para atrair sua atenção novamente, oferecer-lhe favores, ávido por outra oportunidade de se sentir especial.
Contam uma história, não sei se é verdade. Quando ele se tornou professor de História, não estava preparado para a função. Ainda assim, os alunos o adoravam. Se lhe faziam uma pergunta difícil, ele simplesmente inventava a resposta. Criava enredos fantásticos sobre Napoleão, Cleópatra, Getúlio, ficções completamente descabidas. Sempre imaginei aquele homem enorme, cabelos longos e olhos verdes, narrando qualquer absurdo com uma oratória impecável. Contando qualquer maluquice com um carisma indefectível. Dizem que nenhum dos alunos jamais contestou a verdade. Naturalmente. Eu também não contestaria.
Ele fez parte da minha vida desde sempre, mas lembro de uma noite específica em que ele me explicava a diferença entre o Washington Olivetto e eu: a única diferença é que você é mais jovem, vai poder fazer tudo que ele fez, só que muito antes. Eu não concordava, mas não conseguia rebater o argumento. Depois, ele começava a planejar um futuro fabuloso para nós – um chalé na montanha, um barco, uma piscina do tamanho de um campo de futebol, o que acha? Já que eu era muito inteligente e seria, obviamente, milionária, teríamos tranquilidade dentro de um oásis exótico. Os projetos eram megalomaníacos, algo entre o completamente doido e o simplesmente adorável. Era maravilhoso estar com ele. Quando eu conseguia estar com ele.
Porque, dias depois de projetar uma vida perfeita para nós, ele era capaz de marcar um jantar comigo e não aparecer. Ou de me deixar esperando na porta do dentista ou na janela de casa ou de cometer qualquer vacilo terrível de forma que nem adiantava ficar com raiva, por que nada parecia proposital. Minha vida oscilava entre me sentir especial iluminada a framboesa de ouro escolhida pelos deuses ou me sentir um verme abandonado na sarjeta da desimportância. E eu passei muito tempo me esforçando para ser lembrada. Sendo a mais inteligente, a mais bem-sucedida, a mais brilhante, a mais inesquecível. Observe que loucura. Existe ambição mais inútil que tentar ser inesquecível?
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“Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.”
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Parece óbvio, mas a verdade é que algumas pessoas nos viciam. A gente vicia no elogio grandioso, mesmo que não seja real. Nos projetos fantásticos que nunca vão se realizar. A gente vicia ineditismo, na aventura empolgante, em qualquer coisa que faça-nos sentir únicos e potentes, mesmo que isso custe a nossa sanidade. Como tantas outras pessoas, eu estava viciada nas hipérboles de meu pai. E vivia uma abstinência de cortar o coração. Estava viciada nele invadindo o pátio da escola com caixas de presentes, matando meus colegas de inveja. Nele colocando um ônibus particular na porta do colégio para eu levar quem eu quisesse para a festa. Nele chegando no aniversário com um cavalo de verdade para mim, igual aos dos contos de fadas. Quando ele trouxe um lote de 200 coelhos brancos para animar a nossa Páscoa, meus primos disseram que eu tinha sorte de ter um pai tão fantástico. E eu admitia. Mas também percebia a sorte deles. Por que era ótimo ter um tio excêntrico capaz de surpresas inacreditáveis quando já se tem um pai como os outros, que lembra a dose do remédio e a hora de buscar no dentista.
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“Faço promessas malucas,
tão curtas
quanto um sonho bom.”
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Eu já estava adulta, perdida e exausta quando decidi renunciar. À extravagância, à instabilidade. Acho que passei metade da minha vida nesse processo de desintoxicação. Tentando não me sentir fracassada por não ter tido um destino excepcional, tentando não me sentir miserável cada vez que alguém me ignorava – que terrível a ideia de ser esquecida outra vez. Recuando do fascínio das pessoas emocionalmente irresponsáveis, dos que fomentavam expectativas que não podiam cumprir. Mas, principalmente, recuando da minha própria vocação para me tornar a cópia do meu pai. Se você olha muito para o abismo, o abismo olha para você.
(Entre os heróis de gibi, sempre há alguém que nasce com um superpoder destrutivo e faz o juramento de não utilizá-lo para o bem de todos. Eu sou boa com elogios. E eu evito elogiar as pessoas. Sei que posso fazê-las ascender às nuvens, mas não posso evitar que despenquem de lá).
Na época da faculdade, eu estava dirigindo e tinha um carro na minha frente indo muito devagar. Eu fiquei fazendo sinal e perdendo a paciência por uns dez minutos. Quando ultrapassei, o motorista era ninguém menos que meu pai. Ele estava rindo, tinha feito de propósito: “Por que ficou passando raiva atrás de mim? Por que não tomou logo a outra pista?”. Eu gargalhei, gritando um palavrão. Mas nunca soube responder a essa pergunta.
Certa vez, eu tive um dia ruim e ele disse: venha dar uma volta comigo, você está precisando fazer algo interessante. Ele me levou à casa de um amigo dele que tinha vinte cachorros e um jacaré na piscina – Olha, preciso reconhecer, você me levou a um lugar interessante – Mas o interessante era passar a tarde comigo, jacaré na piscina qualquer um pode ter!
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“Meu pai tem Alzheimer e todo dia me pergunta que dia é hoje. Eu digo que é Dia dos Pais e tasco-lhe mais um abraço.”
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– Pai, tava lembrando de uma viagem que fiz, nem sei mais o nome do lugar. Senti um magnetismo estranho, até chorei quando fui embora. Não faça piada disso.
– Não vou fazer piada. Na verdade, eu senti isso uma vez, você não era nascida. Era uma praia que parecia querer que eu ficasse.
– Uma praia?
Era o mesmo lugar.
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Na década de 70, ele estava viajando com um amigo e o velho fusca estancou na ladeira. Um carro de luxo ficou buzinando atrás e meu pai simplesmente engatou a ré. Esmagou um carro no outro, depois acelerou e foi embora. Anos depois, ele se casou, o amigo também e cada um teve uma filha. Nós duas costumávamos viajar juntas e só eu não conhecia essa história. Quando meu primeiro Fiat estancou na ladeira, um carro de luxo buzinou atrás. Antes que eu engatasse a ré, ela pulou do carro gritando – mas que Édipo filho da puta!
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“Ela não podia olhar para seu pai quando ele tinha uma alegria. Porque ele, o forte e amargo, ficava nessas horas todo inocente. E tão desarmado. Oh, Deus, ele esquecia que era mortal. E obrigava ela, uma criança, a arcar com o peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e mais animais também morrem. Nesses instantes em que ele esquecia que ia morrer, ele a tornava a Pietà, a mãe do homem.”
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Hamlet é a história de um filho que tenta vingar a morte do pai. E sempre me intrigou o fato de ambos terem o mesmo nome: Hamlet é o patriarca ausente e Hamlet é o filho solitário. Hamlet é o fantasma que atormenta Hamlet. Como se os dois fossem indissociáveis! Talvez fosse essa a verdadeira tragédia.
Os livros de Kafka têm algo em comum, todos tratam de problemas sem solução. Menos um, que ele não quis publicar, o Carta ao Pai. É uma correspondência de mais de cem páginas que nunca foi enviada: “Pai, (…) minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”.
Meu pai só chorou quando Bob morreu. Bob era o vira-latas que alegrava a casa, achado na rua, feio feito a fome. De um jeito que eu nunca tinha visto, ele lamentou não ter cuidado mais, tratado antes, feito melhor. Chorou por Bob de todo coração. Eu, adulta, assistia ao drama e não entendia. Parecia o remorso de uma vida inteira.
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“Dizem que embaixo do sarcasmo
Existe uma segunda camada mais viscosa de sarcasmo
Mas na quarta ou quinta você descobre
Uma vontade desesperada de amar
Tem que descascar”
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Eu herdei as grandes sobrancelhas. Herdei a inclinação ao exótico, a vida social agitada, o gosto pelo microfone. Herdei o deboche espinhoso, o egocentrismo e a personalidade hedonista. Mais do que tudo da infância, meu Deus, eu levei um coração partido. Que desconfia de promessas, que é insensível a romantismos. Senhoras e senhores, é bem difícil me impressionar. Só acredito em quem lembra da hora do remédio e o dia de buscar no dentista.
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“Eu compro o que a infância sonhou
Se errar, eu não confesso
Eu sei bem quem eu sou
Eu nunca me dou.”
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Sempre achei graça das camisas coloridas. E da pizza requentada três vezes ao dia. Amei as sandálias havaianas em restaurante de luxo e o paletó italiano no acarajé da esquina, ganhar brinquedo até os trinta, amei ir de Salvador ao Rio a 50km por hora só para irritar os outros na estrada. Mas odiei ter pego três aviões para te encontrar no Natal e ter ouvido apenas que estava atrasada. E sempre que o dia dos pais perdeu para outro evento que te pareceu mais importante. E a camisa de presente que cansou de esperar no armário e coube perfeitamente no porteiro. Eu sabia que merecia mais. Justo de quem dizia que eu nunca deveria aceitar menos.
Meu pai é o Cavalo de Troia que alegrou a minha infância e fez uma algazarra com a minha vida adulta. É o Sinatra estourando champagne, é o Rei do Gado, é o meu Malvado Favorito. É o Bukowski brigando com o seu pássaro azul. Como numa parábola às avessas, em que é o pai pródigo quem retorna arrependido, às vezes ele me pergunta se eu gosto do Raul Seixas. Se curto o maluco beleza da mosca da sopa que não quer tirar onda de herói. E eu olho bem nos olhos dele – pai, e quem não ama o Raul?
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“Uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; (…) na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido.”
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A primeira imagem de pai na mitologia é Urano, o pai ausente. Que foi destronado por Saturno, o pai dominador. Que foi destronado por Zeus, o pai zeloso. E faz séculos que a humanidade aprimora modelos de paternidade moderna, mas eu resumiria a epopéia num único mandamento: nunca esqueça sua filha de pé, na porta de casa, no dia do aniversário dela.
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“Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina.”
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Um dia desses, eu estava dirigindo e havia um carro muito lento na minha frente. Eu sabia que era ele, mas ele não tinha me visto. Esperei quieta, como quem toma coragem. Ultrapassei devagar, ele me viu e eu acenei tranquila. E essa foi uma das coisas mais difíceis que eu já fiz na vida: ter seguido em frente.
É isso.
Eu te amo muito, pai. Mas, finalmente, eu tomei a outra pista.
Obs: respondendo às mensagens, está tudo ótimo comigo e com meu pai! Foi só o meu psicanalista que mandou escrever sobre episódios do passado e eu estou humildemente obedecendo 🙂
A gente se conheceu num quarto de hotel. Foi isso mesmo. Numa viagem a trabalho, sem que eu soubesse, a empresa me alocou no mesmo apartamento que uma desconhecida. Desavisada, a desconhecida abriu a porta e me encontrou sentada na poltrona dela. O tipo da situação que tinha tudo para ser péssima, mas a estranha tinha senso de humor – olá, invasora, eu sou a Jana.
Aquele era o único quarto vazio no único hotel de uma cidadezinha aleatória. Cada uma ocupou uma cama e dividimos muitas histórias durante uma semana. Eu estava cobrindo um evento num acampamento do Movimento Sem Terra, ela era uma indígena convertida aplicando uma pesquisa demográfica. Ficamos amigas quase imediatamente. Ela me acompanhava nas entrevistas, eu ajudava na aplicação dos questionários e a gente terminava a noite na praça. Jana tinha a minha idade, mas parecia muito mais jovem e tranquila. Foi a primeira pessoa no mundo a questionar o número de chaves do meu chaveiro – quantas responsabilidades…
Ela não tinha redes sociais nem celular e, quando a semana acabou, eu imaginei que ia ser difícil manter contato. Mas costumo confiar que o mundo dá um jeito de fazer os bons amigos se reencontrarem. Em outra viagem a trabalho, na Chapada Diamantina, eu estava passando por uma cidadezinha ainda menor e, de repente, vi Jana do outro lado da rua. Nem acreditei. Fiquei tão feliz!Pedi ao motorista que parasse a van, pedi aos colegas que aguardassem um minuto, saltei do carro correndo só para dar um abraço. Ela estava na calçada, encontrando uns rapazes. Quando me viu, eu levantei os dois braços:
– Janaaaaaa!!!
– Oi.
Ela respondeu GELADA. Não sorriu. Não estendeu a mão. Não parecia feliz de me encontrar.
– Tudo bem com você??
Silêncio. Eu não sabia o que dizer. Fiquei sorrindo, sem graça, os amigos dela olhando pra mim. Ainda insisti:
– Que bom ver você, né? Estou de passagem.
– E eu também já vou embora.
Fui me despedindo. Voltei para o carro. Ela sumiu pela outra rua. Eu não entendi nada.
Foi horrível.
No caminho, meus colegas perguntaram se eu tinha me confundido e cumprimentado a pessoa errada. Respondi que sim, que foi um engano. Um doloroso engano. Fiquei calada o resto do trajeto remoendo o incidente e passando por aqueles três estágios que todo paranóico conhece bem: 1) a insegurança: eu disse alguma coisa errada? Será que ela estava chateada comigo? Será que ela mudou? 2) a raiva: custava estender a mão? Tinha necessidade de me dar esse gelo na frente de todo mundo? Então era tudo falsidade o tempo todo?? 3) por fim, a certeza de que EU ESTAVA LOUCA. Senhoras e senhores, saibam que todos os paranóicos do mundo carregam a mesma aflição: achar que inventaram uma relação que nunca existiu. Desconfiam o tempo inteiro que aquela afinidade pode ser uma criação de suas cabeças, uma projeção sem reciprocidade, algo que, para o outro, nem era tão importante assim. Amigos imaginários, quem nunca? Uma dúvida simplesmente a. tor. men. ta. do. ra.
Gente, isso me mata.
Por fim, eu fiquei me sentindo apenas uma otária e esqueci o assunto. A gente cata os próprios caquinhos e segura na mão da dignidade, né? Deixei pra lá. Paciência. A viagem correu bem. No caminho de volta, a equipe inventou de parar exatamente naquela cidadezinha para almoçar e eu sabia que poderia encontrar Jana novamente. Seria péssimo. Seria constrangedor. E é claro que encontrei. Ela me viu e veio correndo me abraçar:
– Amiga, se não fosse você durante aquele assalto! Foi Deus quem te mandou. Eu nem sei como agradecer!
Esta quarentena está me fazendo lembrar de tantas outras. Talvez você tenha já tenha vivido alguma. Momentos em que, de repente, seus planos foram adiados e você entrou num período cinzento de espera. Um problema, um emprego, uma doença, um ambiente social indesejado. Se uma situação já te aprisionou por muito tempo, você já viveu uma quarentena.
E acho que os sintomas de qualquer quarentena são sempre os mesmos.
Você tem a sensação de que sua vida está parada. Os dias parecem longos e iguais. Você perde muito tempo na internet, fica irritado por bobagem. Come o tempo todo. Dias e noites se misturam numa longa insônia – hoje é quarta ou quinta? Hoje é domingo. E, amanhã, também.
Geralmente, no início do isolamento, a gente faz questionamentos, fica teorizando sobre o problema. Depois, se sente apenas exausto e até evita falar no assunto. Começa montando um cronograma para superar aquela fase ruim – estudos, exercícios, meditação – mas tudo termina em frustração no sofá. Você arruma as gavetas, joga muita coisa fora. Encontra fotos antigas. Pensa em telefonar para pessoas que você não vê há anos. Você se arrepende das coisas que não fez quando ainda dava para fazer alguma coisa. As lembranças te dão um lugar para onde ir quando você precisa continuar aonde está.
Numa quarentena, você vê a chuva pela janela do apartamento. A palavra apartamento significa apartado, separado, isolado. Sim, você se sente muito apartado. Há momentos em que você se pega tendo inveja de quem está bem, curtindo a vida. Em outros, você se sente culpado por todos os seus privilégios. Você reflete sobre a solidão e a vulnerabilidade no mundo. Você se sente sozinho e vulnerável.
Você pode sentir falta de ver gente. Ou sentir falta da pessoa que você se tornava quando estava em público. Como naquele conto de Machado de Assis, onde um militar é designado para vigiar um sítio vazio durante semanas. Mesmo estando completamente sozinho – poderia andar pelado, se quisesse – ele veste a farda todos os dias. Não gostava do que via no espelho quando estava sem ela. Se sentia perdido sem aquela farda.
Bem, acho que toda rotina social inclui muitas fardas. E uma quarentena repentina te despe de um jeito cruel – ela revela tudo aquilo o que você não é. Você não é o seu emprego, a sua vida social, o seu modo de vestir, de viajar. Você não é o seu talento para deixar uma boa impressão nas pessoas – especialmente quando não há ninguém para quem exibir essa figura fabulosa que você imagina ser. Só sobra, no espelho, um ser humano despido de tudo. Apenas isso. Você consegue gostar desse cara?
A pior quarentena é a que não tem data para acabar. Você fica à deriva pelas redes sociais, esperando algo acontecer – Esperando Godot, diria Beckett. Eu costumo comparar esses isolamentos a uma viagem marítima. Imagine que um deslocamento de 100 km por terra significa ver paisagens, pessoas, movimento. Já os mesmos 100 km num navio equivalem a um horizonte estático, sem início nem fim, onde você perde a noção dos dias. Você se sente confinado naquela imensidão, sem saber se falta um dia ou um ano para chegar a algum lugar.
E, já que falamos em oceano, me diga: quem você levaria contigo para uma ilha deserta? Essa era uma pergunta comum nos antigos questionários adolescentes. Era engraçado por quê todas respondiam a mesma coisa: o Leonardo DiCaprio. Hoje, imagino que o isolamento que a maioria de nós está vivendo não está acontecendo numa ilha deserta – lamento, gente – e tampouco nos deram chance de escolher com quem dividir essa ilha – desculpa, Léo – mas a pergunta é tão atual. Uma quarentena congela a nossa vida subitamente no hoje. Se você ficou confinado exatamente com quem você escolheria, você é uma pessoa de sorte. Isso inclui quem desejou estar apenas consigo mesmo. Mas, se sua ilha não é nada do que você sonhou, talvez algo precise mudar.
Essa história de navios e ilhas me fez lembrar de O Amor nos Tempos do Cólera. No último capítulo, levantam a bandeira amarela: é anunciado que o navio entrará em quarentena. Que alegria. Finalmente eles poderiam navegar sem roteiro. Agora estavam sozinhos, longe de tudo, livres do mundo e tinham a chance de viver intensamente aquele momento. Era uma grande oportunidade. A quarentena é o final feliz.
Cientificamente, a palavra quarentena significa o prazo para algo se revelar: um sintoma, um diagnóstico. Sei de quarentenas que duraram dias, outras que duraram anos. Sei de gente que passou a vida aprisionado onde não queria estar e de gente que nunca percebeu que estava aprisionado. Isolamentos fazem a gente questionar se estamos vivendo a vida errada, na cidade errada, no planeta errado. Mas também nos aponta dádivas que, de outro jeito, a gente não perceberia.
Quarentena é revelação. E um navio bem grande, do tamanho do mundo, está em quarentena. É uma tragédia. E é, também, uma grande oportunidade.
Acalme o coração. Levante a sua bandeira amarela.
Quantas quarentenas você já viveu? O que esta quarentena quer revelar para você?