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Posts Tagged ‘mariana miranda’

Estou do lado de fora da sala de aula. O professor já entrou. Eu perdi na avaliação desta disciplina por que enviei um documento errado. Não bastava estar apanhando miseravelmente da bibliografia em francês, eu mandei o documento errado. Fui reprovada. Todo mundo soube. Eu não quero entrar.

Sei que constrangimento é uma forma de vaidade e fico aqui pensando em um episódio de Machado de Assis, que li há muitos anos. É quando o pai de Capitu, o Sr. Pádua, empregado numa repartição, assume temporariamente o cargo do seu superior. O chefe precisava ir para a Europa e, naquela época, esta era uma odisseia que durava meses. Enquanto administrador interino, ele passou a ganhar o salário do diretor. Comprou carro, roupas, joias, incorporou um novo estilo de vida para a família, passou a ser reconhecido nos lugares. Vinte e dois meses depois, com o retorno no chefe, o Sr. Pádua entra em desespero:

– Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?

– Que público, Sr. Pádua?

Na época, este diálogo, tão periférico na trama, me fez rir muito. Acho que foi de nervoso.

Houve um dia, ano passado, em que eu acordei num lugar desconhecido. Não conseguia levantar. Apalpando as coisas no escuro, entendi que estava numa maca e que talvez aquilo fosse um ambulatório. Ao invés de chamar alguém e fazer perguntas, eu simplesmente me deixei ficar ali. Era a primeira vez em meses em que eu estava completamente sozinha. Achei inacreditável aquele silêncio.

(Eu tive um problema no cérebro causado por exaustão).

Mais do que nunca, imagino que mudanças importantes desenrolam-se em hiatos. Casulos, cascas de ovo, ritos de passagem que transcorrem nos bastidores. Veja só, pela tradição, o que é um casamento? Os noivos fazem uma celebração, viajam em lua de mel e retornam à sociedade como pessoas casadas. Se alguém que perde o cônjuge, fecha-se em luto e retorna como viúvo. Um casal engravida, tira uma licença e retorna como família. Se até o Divino precisou de 40 dias no deserto para se preparar para uma vida nova, quem sou eu para desmerecer uma fuga? Apenas reservem. Meu lugar. Nesse foguete.

Estou na porta da sala. Cansada e constrangida. Estou lembrando de um filme de James Bond, quando o informam que a cabeça dele estava valendo uma recompensa de um milhão de dólares. Antes de fugir, ele duvida da informação: um milhão? Ninguém vale tudo isso.

Constrangimento é vaidade. Que público, Sr. Pádua? Ninguém vale tudo isso.

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“E então tudo – livros, velhas cartas, bustos de barro, quadros usuais do canto mais seguro – te parece à beira do mesmo abismo estéril. E a indiferença envenena o tempo e mente ao presente com esse falso futuro que já vem e nunca chega.
E nada voltou a ser o que fora.”

(José Mateos)

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“Todo o meu nascer

foi prematuro.

 

Agora,

em meus filhos

me vou dando às luzes.

 

Descendo, sim,

dos que hão de vir.”

 

(Mia Couto / Biografia)

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Ela era uma babá nos anos 50. Nas horas vagas, Vivian Maier saía para fotografar as ruas. Acho o trabalho dela lindo e sofisticado, mas gosto especialmente do fato dela ser a precursora das selfies.

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O trabalho de Vivian me fez notar que as pessoas não registram suas vidas. Fazem fotos de viagens, de festas, de excessões. Este ano, passei a me fotografar nos lugares da minha vida real: no banco, no mercado, no espelho de segurança do estacionamento. Sem o propósito estético das selfies atuais, sem filtro. Também sem o talento nem a Rolleiflex da Vivian. Nem sei o que fazer com essas imagens. Ela também não sabia o que fazer com as dela e deixou tudo num baú trancadíssimo num sótão aleatório de Nova York.

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Pois é, Vivian, acho que esse blog é o meu baú. Mas ele segue aberto. Aqui, num sótão aleatório da internet.

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“- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?

– Depende – responde o português.

– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?

– Sim.

– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.

O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda dos sentidos.

– Me receite um remédio para eu desmaiar.

O português rir-se. Também a ele apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.

– Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.

Riem-se. Rir juntos é melhor do que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.”

(Mia Couto / Venenos de Deus, Remédios do Diabo)

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“A nossa pequena história nada pode dizer aos outros e não ser grande contribuição para a história do destino comum. Mas é a nossa vida. Pedaços da nossa alegria, momentos de desespero, amores, desilusões. Por isso escrevemos poemas, fazemos greves, vamos ao futebol e ao teatro. Alguns têm a rara felicidade de participar em revoluções e sentir aí que o destino é domável. O que procuramos, nós, os seres comuns, não é a grande história, é antes não deixar morrer este anseio libertador. E participamos em novas aventuras, mesmo que seja só passear nas montanhas com os netos. O que nos motiva, no fundo, é saber que alguém precisa de nós.”

(Manuel Monteiro / A Imensa Solidão do Proletariado)

Esse é um trecho de um romance que ainda vai ser publicado. Entrevistei Manuel para um jornal em 2009, comentei aqui na época. Então, depois de ler Cabeça de Calcário – um conto brasileiro sobre a passagem do tempo – inventei Baltazar, um personagem inspirado em Manoel, sua rotina de alfarrabista e duas ou três conversas que tivemos sobre o destino da Europa.

Gosto do Manuel pelo entendimento histórico e fatalista que ele tem sobre a própria vida. Ele tinha um blog e deixou de atualizar em 2011 – sim, eu sou a única pessoa do Atlântico que ainda atualiza um blog. Mas tenho notícias sempre. Sei que ele está preocupado com as ex-colônias, com o mundo. Às vezes, penso em contar sobre a existência de Baltazar e outros textos – ele só leu a matéria do jornal, não sabe do resto. Talvez não precise saber. Achei que soaria assustador ele descobrir que existe alguém que o observa há anos, intercala encontros casuais e escreve sobre a sua vida.

psicopata

Soube que ele estava escrevendo esse livro, quem sabe seja uma autobiografia, achei que seria útil enviar contribuições, sei lá. Talvez ele achasse isso meio pretensioso. Ou apenas psicopata mesmo.

Às vezes, tenho vontade de abrir o jogo e mostrar às pessoas o material que tenho sobre elas. Por hora, vamos seguir no anonimato para evitar a fadiga e a camisa de força. Não quero ninguém atravessando a calçada com medo de mim.

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Tenho uma professora que é muito inteligente. Dessas pessoas que leu muito, escreveu muito, viajou muito. Sempre quis saber como ela conseguia administrar tantas atividades – por que eu não consigo administrar nem a minha geladeira – mas tenho tentado me educar a não fazer perguntas desnecessárias. Sempre que pensava no fato de que ela, na minha idade, já tinha lido dez vezes mais do que eu, ponderava que eu tenho duas crianças pra criar, casa, trabalho e não se pode ter tudo nesta vida.

E esse sensato consolo bastaria a qualquer pessoa que não tenha um baratino maluco por informações supérfluas. Na primeira oportunidade: professora, como você conseguiu?

Ela achou graça e respondeu que bebia muito café. Especialmente depois do parto dos SETE FILHOS e da chegada dos DOZE NETOS, já que administrar a família, PALESTRAR PELO MUNDO, GANHAR PRÊMIOS e ser UMA REFERÊNCIA INTERNACIONAL tornavam a rotina meio cansativa, então uma xícara de café era um santo remédio.

Enfim. Agradeci a resposta.

Eu e as minhas perguntas desnecessárias.

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“O imaginário é algo como o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma comunidade, é o cimento social.” (pág. 65)

“Um dedo é apenas um dedo integrado a uma mão, e essa mão a um braço, e esse braço a um corpo. Mas, no momento em que se coloca no dedo um anel que marcará o status matrimonial de uma pessoa, esse dedo muda de posição. Continua a ser um dedo, mas é ao mesmo tempo muito mais que isso.” (Roberto da Matta) (pág. 69)

“O ritual está sempre dizendo alguma coisa sobre algo que não é o próprio ritual” (Hermano Vianna) (pág. 70)

“Existe uma frase, do poeta russo Vladimir Maiakovski, que abre um caminho interessante nas discussões sobre imaginário e turismo: “dizem que, em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Embora provavelmente não tenha sido escrita com intuitos turísticos, a reflexão do poeta, falecido em 1930, demonstra a relação entre o aqui e o lá, quando depositamos todas as nossas esperanças no que está afastado de nós: a felicidade, nunca presente, mas sempre adiada no depois e no distante.” (pág. 81)

“Todo destino turístico é construído a partir de um imaginário coletivo. A força de atração, como o próprio nome atrativo turístico sugere, não está no elemento em si, não lhe é inerente, mas se encontra nas imediações, ou seja, no discurso que desenvolvemos para nos ligarmos a ele.” (pág. 84)

“Na relação entre turismo e imaginário, há a consagração daquilo que está longe de nós, uma distância exótica que pode ser temporal, espacial ou a compreensão simbólica do outro.” (pág. 84)

“O conceito de diáspora oferece uma crítica dos discursos de origens fixas, ao mesmo tempo em que leva em conta um desejo pelo lar, que não é a mesma coisa que o desejo pela terra natal.” (Avtar Brah) (pág. 125)

“Uma identificação que se pode chamar de topofilia é o elo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Na fenomenologia da imaginação, topofilia designa o exame de imagens do espaço feliz.” (pág. 148)

(Nara Maria Carlos de Santana / Turismo entre Diálogos)

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E agora Inês é morta.

Naquele momento em que eu tomava fôlego para dizer exatamente o contrário. Num contexto que nada tinha a ver com a sorte Inês de Castro nos jardins de Coimbra, essa expressão que eu também costumava ouvir no Brasil, ainda que a maioria dos brasileiros não tenha ideia de quem seria Inês e por qual motivo veio a falecer. Às vezes, ouvindo o modo de falar daqui, reparo nas frases que eu repetia sem ter ideia do significado.

Inês é morta.

Em Portugal, não se diz que alguém está morto, porque não se trata de uma situação temporária. Inês está juíza, está fumante, está corintiana e está católica por que ela pode, um dia, deixar de ser. Mas Inês é mãe, é filha, é negra e é alta para sempre. Está esposa de alguém, é viúva de alguém. Está amiga, é irmã. Está jovem, é velha. Está viva, é morta.

Eu não quero ficar.

Naquela fase em que o lugar começa a parecer seu. E já há um vagão preferido no metrô e planos para as férias com a família: não vai mais haver férias. Sem mais idas e vindas. Em inglês, o verbo to be não faz distinção entre ser e estar e eu nem imagino um mundo onde não haja diferença entre estar sozinho e ser sozinho, entre estar bêbado e ser bêbado. Só quem foi alfabetizado em português poderia entender, desde a primeira infância, que o lobo é mau e está com fome.

“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”

Pareceu repentino. Ideias vão se amontoando pela casa, te arrastando para a rua, te puxando pelo braço e, quando você se dá conta, está na porta do aeroporto. Tirando os fins de semana, quantos dias faltam? Se eu fizer uma escala no México, são quantos dólares a mais? É preciso encerrar a conta no banco e na telefonia? Mas as portas do metrô abrem-se e aquele labirinto de gente e a claridade da rua fazem tudo parecer irreal. Subo Alfama levando o leite e o pão.

Faltam 20 dias e a escala no México custa 500 dólares.

A sua foto no passaporte me lembra um verso de Drummond: também já fui brasileiro, moreno como vocês. A foto do meu passaporte parece o cartaz de um cabaré no Alecrim: Valéria vai levar-te à miséria. Fiquei esperando no salão da embaixada, todas as estátuas olhavam para mim. Eu não precisei dizer nada. Depois de um silêncio devastador, você perguntou se eu estava fazendo a escolha certa. E quem neste mundo sabe se está fazendo a escolha certa??

“Se, em certa altura, tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita. Se, em certo momento, tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim. Se, em certa conversa, tivesse dito as frases que, só agora, no meio-sono, elaboro – se tudo isso tivesse sido assim, seria outro hoje e talvez o universo inteiro fosse insensivelmente levado a ser outro também”.

Em 1755, Lisboa passou por um terremoto. Que provocou um tsunami, que causou um incêndio, que contaminou a água e culminou na peste. O trágico não vem a conta-gotas, diria Guimarães Rosa. Hoje, olhando para essas ruas impecavelmente restauradas, penso que a gente se recupera de qualquer coisa. Ou não se recupera de nada e segue aquela lógica do Fitzgerald: um homem não se recupera de tais estremecimentos – ele se torna uma pessoa diferente e, eventualmente, a nova pessoa encontra coisas novas para se preocupar.

O problema de morar numa cidade indubitavelmente bonita é que você nunca sabe se realmente gosta do local ou se ele apenas te conecta com seus arquétipos de perfeição. É uma gaiola dourada. Meus dias de merda no último inverno pareciam cenários do Pinterest. Uma vez, no muro de um país do norte, havia um grafite: coisas extraordinárias estão sempre acontecendo em outro lugar. A sentença parecia deslocada por que estava escrita numa paisagem fabulosa, num país de primeiro mundo, como alguém poderia desejar estar em outro lugar? Vejo que, em qualquer cenário, a frase cabe tranquilamente.

Foucault diz que Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação. O coitado não precisava saber de tanto. As frases mais difíceis que ouvi na vida tinham conjunções adversativas de moer o espírito e, no final das contas, nem eram necessárias. Decisões ruins já falam por si, mas uma frase errada num momento crítico só fixa legenda à tragédia, nos dá material para mastigar neuroses pelo resto da vida. Recuei para não pronunciar nenhuma idiotice. Talvez, um dia, eu saiba exatamente o que deveria ter dito no salão da embaixada. Dispomos de uma gramática com mais de 400 mil palavras e, até hoje, eu não consigo pensar em nenhuma que não quebrasse o coração de alguém.

“Quer morrer no mar, mas o mar secou.

Quer ir para Minas, Minas não há mais.”

Quando cheguei, eu nunca tinha ouvido falar de Sintra. Fui conhecer com duas colegas também novatas. O desembarque do trem foi um arrebatamento eufórico: as casas, as lojas, tudo parecia incrível, corremos por aquela praça a tarde inteira. No dia seguinte, nos explicaram que a gente não havia chegado à Sintra, aquela era a praça do desembarque, uma área de serviços, a cidade ficava mais à frente. Adorando o engano, respondi rindo: queridos, parem, a gente não precisava saber disso!

“Vou passar a noite em Sintra por não poder passá-la em Lisboa, 

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. 

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência 

Sempre, sempre, sempre

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma. 

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida.”

Não sou boa em abrir o jogo. Arregalo os olhos, aceno sinais, mas não consigo dizer ao outro que o chapéu dele está pegando fogo. Em francês, não é possível construir uma frase sem que o sujeito esteja exposto: je, tu, il. Mas, em português, dá pra escrever uma enciclopédia usando apenas o sujeito oculto: descobri tarde, tentou muito, quebramos a cara. Quem? Eu, ele, nós. O interlocutor compreende.

Ou assim a gente supõe.

Em árabe, há mais de 100 palavras para designar camelo. Em inglês, o substantivo mais repetido é tempo. Em português, a palavra mais falada é coisa, que pode ser usada para definir camelo, tempo, dinossauro, asteróide ou qualquer outro substantivo do nosso idioma. A nossa palavra mais importante não tem significado próprio, ela sinaliza algo que já estaria evidente no contexto.

Ou assim a gente supõe.

Num dos nossos primeiros passeios, eu tirei uma foto sua na Regaleira. Você tinha 25 anos. Todos os anos em que voltei, refiz a foto no mesmo lugar. Vi aparecerem os seus primeiros óculos, os primeiros fios brancos, as primeiras preocupações. Sempre um perfil fugidio, dessas belezas que vão mudando com a paisagem, num fluxo imprevisível de dilúvio, calor, granizo, primavera. Ajusto o foco, de novo. Dessas metamorfoses que a gente não sabe aonde vão dar e quer estar ali para ver.

Quando ainda cursava Antropologia, me falou sobre o conceito de não-lugar, de Marc Augé. Espaços que não são um destino em si, mas um local de trânsito: um corredor, um elevador, uma rodoviária, uma sala de espera. Ninguém diz que está saindo de casa para ir ao viaduto, eles são um preâmbulo, um hiato. Como esta ponte onde estamos passando agora? Sim. E por quê você quis pesquisar sobre isso? Não sei. Na Guerra Fria, quando a União Soviética e os americanos resolveram travar uma guerra, não o fizeram em suas casas, mas no Vietnã, na Alemanha, no Afeganistão. Acho que países inteiros já foram considerados um não-lugar. E penso que todo mundo já foi um hiato na vida de alguém.

“Quando estão juntos, satisfaz-se em fitá-la, em ouvi-la, em observar-lhe as pupilas e o movimento dos lábios a um metro de distância dos seus olhos. Enquanto fala com ele, Mariana pertence-lhe.”

Hugo Mãe conta num romance que conheceu o Esteves num asilo, aquele que é citado por Fernando Pessoa no poema Tabacaria: é o Esteves sem metafísica. Esteves seria um rapaz de entregas que trabalhava na rua onde o poeta costumava fumar e, anos depois, ele teria ficado orgulhoso de ter sido citado, ainda que de maneira irônica: sem metafísica? Que inverdade! Achei o caso engraçado. Parei um minuto para pesquisar se era mesmo real este encontro no asilo e o que teria acontecido depois, mas algo me deteve. A história era ótima. Tão portuguesa. Carregar esta dúvida seria um privilégio.

“Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais”

Encantos deste inverno: uma película de gelo sobre a janela de manhã. O sótão alugado, a experiência de viver dentro de um telhado. Todos os reencontros, mesmo os inesperados e constrangedores. Hambúrguer com cerveja no café da manhã. A biblioteca da universidade.

Tristezas deste inverno: saudades da família. Uma noite de chuva dentro do transporte público sublinhando o desconforto burguês de não possuir um carro. Xenofobia nas lojas, nos bares, no trânsito. O aquecedor que vazava gás e fazia sonhar com o Terceiro Reich. Uma frase do filme de Curtis Hanson: Esta é a cidade dos anjos e você não tem asas.

Sento-me sobre o telhado, de madrugada. Fito o Tejo lá embaixo, como um deus que descansa no sétimo dia da criação. Acho que tenho com essa cidade uma dessas relações obsessivas que possuímos com todo mundo que já nos deu o fora. Faculdades que nos reprovaram, festas em que fomos barrados, empregos que nos dispensaram, filhos da puta em geral. Me pergunto se não voltei só pra ter a oportunidade de mandar tudo isso à merda. É possível. Sou capaz de apontar um canhão para matar um mosquito.

But I’m a creep, I’m a weirdo. 

What the hell am I doing here?

I don’t belong here”

Desculpa por não querer ficar. Desculpa por ter chegado tão longe para, no final, dizer que preciso da minha aldeia. O que a gente é e o que a gente está são coisas diferentes, então eu também entendo o seu silêncio – nós somos próximos, mas estamos distantes. Agora, da janela do táxi, a avenida da Liberdade passa tranquila, até amistosa e, mesmo o aeroporto – onde já embarquei mais de vinte vezes e nunca me pareceu um lugar fácil ou familiar – já não assusta. Todas as coisas parecem acessíveis quando a gente já não precisa mais delas.

“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”

É o fim de uma era, gajo. Aqui se acaba a nossa década de Lisboa.

É a última chamada.

E agora Inês é morta.

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