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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

Pensar na sua chegada me faz lembrar a história de um amigo meu que tinha carro, mas não tinha carteira de motorista. Por falta de tempo, de dinheiro, de paciência: trabalhava perto, era caseiro. Bastava sair pouco, fazer trajetos curtos, em horários de pouco fluxo. Sem problemas. Ficou assim por anos.

Não é que ele detestasse dirigir. Gostava de guiar, por exemplo, depois da última sessão de cinema, de madrugada, com os vidros abertos. Numa dessas noites, voltando pra casa, tocou uma música no rádio: era uma música antiga que ele adorava. Linda. Ele já estava chegando, aí aumentou o volume e resolveu dar mais uma volta no próprio quarteirão só para ouvir até o fim. Até a música acabar. E ela acabou.

Aí tinha uma blitz.

Infração grave, cinco pontos na carteira, apreensão do veículo, multa e penalidades diversas.

Ridiculamente traído pelo acaso, meu amigo precisou frequentar a auto escola para aprender algo que ele sempre soube: dirigir. Gastou tempo e dinheiro. Pelo menos agora já podia sair em qualquer hora e lugar. Naquele ano, ele foi visitar um colega nosso em outra cidade e fez um passeio de férias. E começou a viajar sempre que podia, conhecendo tudo pelas estradas. O mundo dele ficou maior. Ia cada vez mais longe.

Meu amigo já não mora mais aqui. Quando a gente se reencontra, sempre alguém fala sobre a história da carteira de motorista e ele dá risada. Diz que, às vezes, a gente se acomoda com pouco, mas que se você estiver aberto a mudar de rota, coisas fantásticas podem acontecer. São os sinais do universo. Como eu acredito que aconteceu para mim.

Tenho pensado muito em você, que entrou na minha vida como uma música linda.

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Leonid Afremov (born in Vitebsk, 1955) is a Belarusian

Faz um tempo que eu acompanho o trabalho de Leonid Afremov. É aquele pintor de origem bielorrussa que usa cores berrantes para retratar paisagens de inverno. Gosto dos quadros dele, mas, principalmente, gosto dos nomes que ele escolhe para os quadros dele. Queda de Ouro, O Fim da Paciência, Juntos na Tempestade, Antecipação, Jogos Perigosos, Mágica Antiga etc. Uma tela, quando ganha um título assim, faz a gente imaginar histórias por trás da cena.

Na música, acho que o campeão em títulos poéticos é o Chopin: Noturno, Tristesse, Valsa Minuto, Fantasia de Improviso. Acho que Grande Valsa Brilhante faz pensar num romance vitoriano.

Imagino cenários e enredos também no supermercado, na lanchonete, já reparou em como batizam as tortas de doceria? Pecado de Damasco, Merengue à Moda Antiga, Cabelo de Anjo Dourado sob Pêssegos da Macedônia. Acho lindo. E os rótulos de vinho? Tributo Vintage Reserva, Um Sonho Espanhol, Lágrima Cristã dos Feudos Rosados de São Gregório. Há nomes de condomínios residenciais, de pacotes de viagem, slogans de iogurte importado – tantos títulos interessantes esperando por uma história.

É um mundo de hipóteses discretas. Eu vejo literatura em todas as coisas.

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Ele nunca se parece com as músicas que compõe. Nesse documentário novo, do Miguel Faria Jr., observe. Um cidadão todo almofadinha, contido, num apartamento monocromático com vista para o mar. Você olha, olha e nada. Ouve aquele cara falar e nada. Fica procurando o poeta, palhaço, pirata. Que era bedel e era também juiz. Das lutas contra o rei e das discussões com Deus. E não encontra. Nunca aceitei o fato de que, desde jovem, Chico Buarque se expressa como um funcionário público e se veste como o tio da Sukita. Mas é o cara que compôs Apesar de Você. Repare que tem alguma coisa errada nisso aí.

O documentário é cuidadoso, é muito bem feito. Tem até umas cenas legais – aquelas em que ele não aparece. Maria Bethânia sorri para a câmera – me pego cantando, sem mais nem por quê. Adriana Calcanhoto sobe ao palco – e me sobe às faces e me faz corar. Carminho e Milton Nascimento fazem a gente querer largar tudo e ir sofrer baixinho debaixo da mesa – estrelas percorrendo o firmamento em carrossel – e é bonito e é triste quando, miraculosamente, Ney Matogrosso profetiza – eu te vi suspirar de aflição e sair da sessão frouxa de rir. Mas aí já é tarde. Todo mundo saindo da sessão aos soluços. O filme acaba, as luzes se acendem – me diz, agora, como hei de partir?

Minha teoria é de que Chico Buarque não existe, é o nome que deram a um vírus de laboratório. Aquele tio da Sukita que dá entrevista é um ator contratado para ilustrar as capas de disco, nunca compôs uma linha, só conta historinhas de sofá – ditadura, futebol, Marieta – faz uns 50 anos. Os sintomas do vírus são imprevisíveis – levam à bebedeira, apertam o peito, fazem chorar. O Brasil foi enganado por todos estes anos. O Chico de verdade mora num tubo de ensaio.

Já faz décadas que tentam criar uma vacina, um antídoto e nada: a epidemia voltou para fazer estrago. Recomendo o documentário, mas com moderação. Em caso de recaída, um médico deverá ser consultado.

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Na antiguidade, era hábito dos sultões orientais curvarem-se para jogar um lenço à frente da mulher considerada escolhida. Esta expressão era conhecida na Europa e, quando Napoleão cortejou sua futura esposa, ela descreveu: “Ele jogou o lenço e, com isso, convidou-se para jantar”. Na época, ele era apenas um jovem militar e, ela, uma viúva seis anos mais velha, inteligente e sem herança. Pouco tempo depois, os dois tornaram-se imperadores da França.

Mas “jogar o lenço” era diferente de “jogar a toalha”. Historicamente, nas lutas de ringue, jogar uma toalha aos pés do adversário significa abdicar da partida. Um aceno do pugilista para evitar que o adversário faça um estrago maior sobre o lutador já massacrado, um superlativo para o ato de desistir. Era levantar e dizer: opa, acabou, chega desta merda, fim.

Assim, insistir e desistir eram movimentos muito semelhantes. Se alguém observasse de longe, te visse curvado, olhando de baixo para cima, jogando um tecido aos pés de alguma entidade hipotética, não saberia se você está investindo fortemente naquilo ou se está apenas chutando aquela oferenda. Provavelmente, iria interpretar como bem quisesse. Desejar sempre foi um gesto discreto. Absolutamente particular.

Acredito que, ainda hoje, fazer planos seja bem isso: pense em algo que você quer muito. Agora se imagine tendo que abdicar daquilo. Não seria fácil. Insistir num projeto é difícil, mas desistir também envolve um esforço de despego e desconstrução de castelos tijolo por tijolo igualmente exaustivo. E não há terceira hipótese. O sultão e o pugilista não se entendem por que, no fundo, são muito parecidos.

Penso nisso às vezes por que faço parte de uma geração com muitos castelos inacabados – meus amigos estão envelhecendo e não sei se algum ainda acredita que será imperador da França. Tampouco consiga abandonar a farda. Estamos paralisados. Eu costumava associar qualquer ato de desistência ao gesto de levantar os ombros e sair batendo a porta, como se houvesse sempre uma alternativa mais fácil esperando lá fora – às vezes, não há. Sem os seus planos, o que é que ainda lhe sobra? Dos dois lados da porta, há sempre um piano pra ser carregado.

Observo à minha volta e não saberia dizer quem ainda está jogando o lenço, quem está jogando a toalha ou quem está jogando a si mesmo no chão e esperando que um trem lhe passe por cima. Chega de bobagem, esse trem não vai vir. Acho que desistir também é para os fortes. Acho que desistir é pra quem tem coragem.

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Depois do banho, minha avó paterna penteia os cabelos, se perfuma e senta na poltrona de sempre. E sorri pra mim. Ela não faz ideia de quem sou eu, não reconhece nem a casa onde mora, mas me cumprimenta como se fosse uma nova amiga: olá, como vai você? Se eu puxar assunto, é capaz de conversar sobre qualquer coisa – pergunta como vai a minha família. Diz que eu sou muito bonita e que meus sapatos parecem sapatos de boneca. Anuncia que está preocupada com assuntos do instituto, que precisa ir à rua resolver alguns problemas. Pergunta se eu já almocei. Depois se irrita: mas que diabos, por que eles ainda não vieram fechar essas janelas? Há horas em que minha avó fala coisas desconexas, pergunta por pessoas que já morreram, não sabe onde está. Mas nunca perdeu a forma de ordenar que fechassem as janelas. Ela vai até o quarto e, na volta, apresenta-se a mim novamente – olá, como vai você? A mesma forma de estender a mão com firmeza, de tomar a iniciativa de se apresentar a qualquer desconhecido. Inconfundível. Acho que é isso o que chamam de alma. Eu respondo que estou muito bem, obrigada. E ela sorri simpática, me olhando com seus olhos azuis. E eu acho curioso como o tempo garimpa o nosso melhor – minha avó esqueceu de tudo, menos da própria altivez. Levanta o olhar, estuda a casa, pergunta pelos empregados. Questiona a demora das coisas, fala sobre o trabalho dela. Diz que precisa sair, elogia os meus sapatos. E não descansa enquanto não fecharem as janelas.

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Não acham que a disputa petralhas cubanos x coxinhas racistas foi reveladora, amiguinhos? Primeiro, por que a apuração dos votos atrasou por uma hora em respeito ao fuso horário do Acre – o que, necessariamente, comprova a existência do mesmo. Mas, principalmente, por que ela acabou com o longo trabalho de construção de imagem pública de muita gente fina, elegante e sincera. Conhece alguém que tenha passado o ano inteiro postando trechos de Paulo Coelho, foto de família feliz e cachorrinho para doação, mas que, de repente, entrou numa vibe malévola de “nordestino favelado feladaputa” e “chupa essa, playboy” para surpresa de todos? Pois é. Um lado acusando o outro de ditadura – não sei que ditadura é essa que até agora não chegou para sentar o cassetete em ambos – e perderam a linha bonito. Achei válido, achei coerente, achei que devia reprisar no Animal Planet.

Mas tudo isso foi até ontem. Depois de meses de chilique mútuo, acho que está rolando um certo silêncio constrangido nas redes sociais.

A minha primeira hipótese é de que bateu a ressaca moral. Né? Quem nunca? Se você também passou os últimos dias esbofeteando militante e chutando a cara de opositor, eu recomendo esse site que tem como proposta reatar as amizades com slogans criativos. Frases como “desculpa ter te mandando tomar em Cuba” ou “engavete tudo o que eu disse” tentam resgatar a paz mundial. Acho digno.

Já a segunda hipótese para o silêncio na internet seria de que metade do Brasil está estudando para o Pronatec e a outra parte partiu para Miami – deixando o Lobão para trás, infelizmente. Não sabemos. Espero que estejam festejando com pagode ou lamentando com Blue Label bem longe de qualquer teclado de computador, só por segurança, por que a cota de constrangimento nacional já estourou. Depois de tanto engajamento político ingênuo e repentino, rezo para que os meus compatriotas canalizem seus instintos homicidas para outro BBB ou Brasileirão – aliás, como de costume – e que reservem apenas o cérebro para questões de ordem pública. Caso tenha sobrado algum, é claro.

Vocês me mataram de vergonha nessas eleições, queridos. Temos que rever esse faniquito aí.

Até 2018. Um beijo.

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Saiu um artigo na Obvious sobre a tristeza. Narrava um cenário hipotético, um encontro de compositores famosos. Sozinhos com seus violões, num silêncio angustiado, “seus olhos abatidos seguindo um amor pedido pela sala”. Num canto, o Damien Rice dedilhando Delicate ou The Blower’s Daughter. Ao longe, as sombras de Jeff Buckley e Bob Dylan. O Smith escrevendo num guardanapo: “Mantenha-se à parte, no fundo do meu coração, separado do resto, onde eu te guardo melhor, onde eu manterei as coisas que você esqueceu”. As taças na mesa, a janela aberta: tantos artistas de coração partido. O que a arte procura quando insiste em vasculhar o fundo do poço?

O artigo não fala sobre isso, mas eu tinha vontade de perguntar: quando se é jovem, genial e reconhecido, o que ainda pode faltar? As biografias são transtornadas. Penso que aquelas celebridades poderiam escrever sobre o que bem entedessem, mas focam exatamente no que não está lá: uma pessoa, um lugar, um afeto. Uma ovelha que escapa e parece ofuscar todo o rebanho. O que é que ainda dói quando se tem quase tudo?

Pior: nunca entendi quem é exatamente o público-alvo deste tipo de música. Quando Someone Like You ficou em primeiro lugar como a canção mais ouvida de 2012, eu olhava com desconfiança para as redes sociais esbanjando vidas eufóricas 24/7. Se todos acumulavam conquistas + amigos + sucessos profissionais, aonde estavam os ouvintes de Adele? Aonde estavam os losers amargurados que consagraram No Surprise? Os rejeitados que ovacionaram Creep? Eles não existem. Ou são as projeções publicadas da internet que não existem.

“Ninguém disse que seria fácil, ninguém disse que seria tão difícil”. A gente poderia incluir naquela sala de estar hipotética o Leonard Cohen e a Edith Piaf. Convidaríamos o Kurt Cobain para a mesa, o semblante perdido da Billie Holiday, o andar sonâmbulo da Amy pelos corredores. Neste jantar utópico, cada um poderia cantar um pouco a sua própria dor e “deixar a garrafa escorregar por entre os dedos, quebrando-se como uma promessa feita”. Os vizinhos aplaudiriam, emocionados. E fariam fila para se jogar do último andar.

A verdade é que a conta não fecha: sempre que outro hino à melancolia faz sucesso, eu fico procurando pelo público-alvo. Talvez a vida dos outros nunca seja o que se pensou. Nos resta aumentar o volume, girar o botão do rádio como se fosse o do gás – o que nos falta domina a nossa vida.

Qual foi a ovelha que te escapou?

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“And more, much more than this,
I did it my way.”
(Frank Sinatra / My Way)  

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Você vai me contar uma história. Onze da noite, garçons limpando o balcão, eu estou no lugar combinado e, de alguma forma, eu já sei disso. Você vai chegar, voz baixa. E vai olhar para os lados antes da primeira frase, por que essa é a sua maneira de procurar as palavras. Se respirar fundo, o assunto é longo, se gaguejar, é grave. Remexe no guardanapo, nas chaves, no cinzeiro. Descruza os braços. Pondera.

Uma vez, a professora pediu para cada aluno descrever a Branca de Neve. Escrevi órfã, pálida, envenenada. Ela mandou chamar a minha mãe. Desde sempre, este esforço para acompanhar o enredo dos textos, tantas vezes o que está escrito não interessa – só a mão suspensa sobre o teclado, as pausas. O interdito que escapa depois das reticências. O baixar dos olhos antes da resposta – o mundo do outro, essa terra estrangeira. Eu tenho tentado chegar mais perto. Sondar a tudo sem movimentos bruscos, sem tropeçar sobre esta ponte frágil. Faz de conta que estamos falando sobre Kant. Faz de conta que estamos falando sobre Bach. Dois centímetros e meio por ano é a acumulação média de detritos pelo tempo, num século muros e cercas dissipam-se em nada. Narramos sem defesa sobre qualquer memória passada e a poeira dos anos assenta sobre o mármore da mesa.

Tantas perguntas. Cada lembrança nos dá um lugar aonde ir quando precisamos continuar aonde estamos. Se não tivermos, em algum canto do coração, um quarto de brinquedos perdido, um pomar longínquo, o quê nesta vida ainda nos restaria? Fala, fala, fala, quase não respiro. Recolho um mosaico confuso, baú chinês, caixa de Pandora – nomes, mapas, segunda, terça, novembro, outono, 1985 – faria alguma diferença se eu dissesse agora que o que houver depois não fará nenhuma diferença? Você vacila antes de falar, te escapa o gesto. Adivinho a paisagem por trás da janela. As histórias banais, a nostalgia do novo – recordações alheias me matam de saudade. Faz de conta que não era longe. Faz de conta que não era tarde. Faz de conta que o futuro cumpriu com tudo o que foi prometido. Me conta sobre o seu cachorro, sobre o seu boneco, o quintal de casa. Agora eu era o seu diário, confessa uma travessura. Divide qualquer coisa antiga que você nunca se esqueceu. E o seu passado não será só seu. E a sua vida não será só sua.

Garçons limpando o balcão, eu aguardo no lugar de sempre. No futuro, talvez eu aguarde em algum lugar hipotético da sua memória. Se você soubesse que chegaria até aqui, teria feito tudo da mesma maneira?

Hoje, senta aqui comigo. Me apresenta o céu e o inferno. Me conta a sua história.

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Eu estou fazendo um curso de História da Antiguidade. O curso é bom, mas a verdade é que tanta informação acaba apertando a minha mente. O principal material didático das aulas é um livro com mais de mil páginas redigidas por uns 40 autores diferentes. Uma loucura. Querem conhecer uma publicação que mistura grego, hebraico e aramaico no mesmo prefácio? Senhores e senhoras, apresento-lhes: a Bíblia.

Nunca ouvi falar de nenhuma obra neste mundo que tenha levado mil e seiscentos anos para ficar pronta, só ela. Foi escrita por gente de todo tipo: homens e mulheres, ricos e pobres, reis e presidiários, judeus e católicos. A maioria nem se conheceu, alguns se detestavam. Uma Babel.

Apesar de tudo, estou gostando do curso. Ainda que eu passe boa parte da aula balançando a cabeça bovinamente, esperando por um milagre. Tenho péssima memória e nunca sei se quem ergueu o cajado foi Abraão ou Simão ou Salomão, se quem foi para o Egito foi Jacó ou José ou Josué, quem matou o irmão de quem, se o deserto fica na Judeia ou na Galileia ou na Arimateia ou em nenhuma das alternativas anteriores, muito pelo contrário. E o que dizer daquelas histórias fabulosas de gente abrindo o mar, movendo montanha, fazendo arca e derrotando gigante? Confundo com Titanic, com Super Man, com Godzila, com King Kong. Spielberg, me abraça.

O fato é que passei os últimos meses tentando decorar nomes e datas e lugares. E o enredo das narrativas mais desbaratadas. Aí, outro dia, a professora perguntou à turma qual era a frase que mais se repetia na Bíblia. A sentença que aparecia 366 vezes, simples e direta, em todas as histórias. Eu não fazia a menor ideia.

E a frase era: “Não tenha medo”. Em todos os enredos, nos três idiomas: “Não tenha medo”.

Às vezes, a gente não repara no que realmente interessa.

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Durante muitos anos, o maior ícone da política moderna no planeta foi um edifício da cidade de Budapeste. Era o maior parlamento do mundo. Ficava à beira do Danúbio e era enorme: tinha 700 salas e 27 entradas de puro luxo e ostentação. Hoje, lá também funciona um museu e a peça mais visitada do prédio inteiro é um pedacinho de metal. Um porta-charutos.

Devo acrescentar que o objeto é numerado, fica num canto desimportante e parece meio gasto. Dizem que ele se tornou relevante por que cada senador tinha direito a um número. No intervalo entre as sessões, eles fumavam um pouco na varanda, depois deixavam seus charutos lá, cada um no seu lugar certo, para terminarem de fumar nos dias seguintes. Era uma tradição.

O cargo no parlamento era vitalício e, às vezes, quando um senador falecia, os outros precisavam escolher um substituto para a vaga. Depois da eleição, o novato tomava posse da cadeira e de todas as obrigações da função: as pastas, os livros, os processos, quase tudo era imediato. Só o direito ao uso do porta-charutos era conquistado depois, com o passar dos anos. Quando ele se mostrasse à altura do cargo. Se o eleito honrasse o seu antecessor, demonstrando honestidade e empenho. E isso não acontecia no momento da ascensão. Era a coroação de um resultado.

Até hoje, na Hungria, um momento importante dentro do cenário político é o fim de um mandato. É quando se agitam bandeiras e se fazem discursos e acontecem estas manifestações que, aqui, estão associadas a uma vitória nas eleições. Nos baixos trópicos, pouco falamos sobre políticos em fim de gestão. O balanço de um governo consta basicamente na prestação de contas ao Ministério Público, que nem vale uma nota na imprensa, ocupada com novas pesquisas de intenção de votos. Aqui, sinônimo de aprovação popular é o empoderamento de um sucessor ou uma reeleição. Vivemos uma espécie de banquete sem digestão, de prelúdio sem ópera: no dia em que passam a faixa, homens e mulheres mergulham no anonimato sem nenhum rito de passagem, seja de aprovação ou de repúdio. Não se guarda, ao menos nos arquivos da mídia de massa, nenhuma memória exata sobre o que fizeram. Eles só voltam aos palanques caso embarquem em outra escalada por mais um cargo público – num círculo interminável que vem formando ótimos marketeiros e péssimos gestores. Num país realmente preocupado com resultados, nenhuma preparação seria mais importante do que o desfecho.

É certo que os tempos mudaram, que os governos evoluíram, mas talvez a democracia nunca tenha sido tão performática. Na maioria dos países, o período de campanha eleitoral se converteu numa corrida baseada na repetição, na persuasão, no discurso. E é curioso como os eleitores ignoram os índices dos últimos quatro anos, como preferem debater sobre promessas ainda abstratas. Se pensarmos pela lógica húngara, aonde estão os dados? O que temos a dizer sobre os que estão deixando a mesa? Nas últimas décadas, quantos eleitos já tomaram posse no nosso parlamento? Por fim, quantos realmente mereceriam espaço num porta-charutos hipotético por seus resultados?

Provavelmente, não sabemos. Desconhecemos os números. Mas sabemos qual é o slogan e qual o jingle do próximo candidato. Em 2014, voltaremos todos às urnas, cheios de fé e esperança num país melhor e mais justo. Que vença, outra vez, o melhor publicitário.

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(Budapeste, 09 de julho de 2009)

Artigo publicado no Jornal Público, de Portugal. Confira aqui

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