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Posts Tagged ‘falamarimiranda’

“O imaginário é algo como o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma comunidade, é o cimento social.” (pág. 65)

“Um dedo é apenas um dedo integrado a uma mão, e essa mão a um braço, e esse braço a um corpo. Mas, no momento em que se coloca no dedo um anel que marcará o status matrimonial de uma pessoa, esse dedo muda de posição. Continua a ser um dedo, mas é ao mesmo tempo muito mais que isso.” (Roberto da Matta) (pág. 69)

“O ritual está sempre dizendo alguma coisa sobre algo que não é o próprio ritual” (Hermano Vianna) (pág. 70)

“Existe uma frase, do poeta russo Vladimir Maiakovski, que abre um caminho interessante nas discussões sobre imaginário e turismo: “dizem que, em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Embora provavelmente não tenha sido escrita com intuitos turísticos, a reflexão do poeta, falecido em 1930, demonstra a relação entre o aqui e o lá, quando depositamos todas as nossas esperanças no que está afastado de nós: a felicidade, nunca presente, mas sempre adiada no depois e no distante.” (pág. 81)

“Todo destino turístico é construído a partir de um imaginário coletivo. A força de atração, como o próprio nome atrativo turístico sugere, não está no elemento em si, não lhe é inerente, mas se encontra nas imediações, ou seja, no discurso que desenvolvemos para nos ligarmos a ele.” (pág. 84)

“Na relação entre turismo e imaginário, há a consagração daquilo que está longe de nós, uma distância exótica que pode ser temporal, espacial ou a compreensão simbólica do outro.” (pág. 84)

“O conceito de diáspora oferece uma crítica dos discursos de origens fixas, ao mesmo tempo em que leva em conta um desejo pelo lar, que não é a mesma coisa que o desejo pela terra natal.” (Avtar Brah) (pág. 125)

“Uma identificação que se pode chamar de topofilia é o elo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Na fenomenologia da imaginação, topofilia designa o exame de imagens do espaço feliz.” (pág. 148)

(Nara Maria Carlos de Santana / Turismo entre Diálogos)

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E agora Inês é morta.

Naquele momento em que eu tomava fôlego para dizer exatamente o contrário. Num contexto que nada tinha a ver com a sorte Inês de Castro nos jardins de Coimbra, essa expressão que eu também costumava ouvir no Brasil, ainda que a maioria dos brasileiros não tenha ideia de quem seria Inês e por qual motivo veio a falecer. Às vezes, ouvindo o modo de falar daqui, reparo nas frases que eu repetia sem ter ideia do significado.

Inês é morta.

Em Portugal, não se diz que alguém está morto, porque não se trata de uma situação temporária. Inês está juíza, está fumante, está corintiana e está católica por que ela pode, um dia, deixar de ser. Mas Inês é mãe, é filha, é negra e é alta para sempre. Está esposa de alguém, é viúva de alguém. Está amiga, é irmã. Está jovem, é velha. Está viva, é morta.

Eu não quero ficar.

Naquela fase em que o lugar começa a parecer seu. E já há um vagão preferido no metrô e planos para as férias com a família: não vai mais haver férias. Sem mais idas e vindas. Em inglês, o verbo to be não faz distinção entre ser e estar e eu nem imagino um mundo onde não haja diferença entre estar sozinho e ser sozinho, entre estar bêbado e ser bêbado. Só quem foi alfabetizado em português poderia entender, desde a primeira infância, que o lobo é mau e está com fome.

“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”

Pareceu repentino. Ideias vão se amontoando pela casa, te arrastando para a rua, te puxando pelo braço e, quando você se dá conta, está na porta do aeroporto. Tirando os fins de semana, quantos dias faltam? Se eu fizer uma escala no México, são quantos dólares a mais? É preciso encerrar a conta no banco e na telefonia? Mas as portas do metrô abrem-se e aquele labirinto de gente e a claridade da rua fazem tudo parecer irreal. Subo Alfama levando o leite e o pão.

Faltam 20 dias e a escala no México custa 500 dólares.

A sua foto no passaporte me lembra um verso de Drummond: também já fui brasileiro, moreno como vocês. A foto do meu passaporte parece o cartaz de um cabaré no Alecrim: Valéria vai levar-te à miséria. Fiquei esperando no salão da embaixada, todas as estátuas olhavam para mim. Eu não precisei dizer nada. Depois de um silêncio devastador, você perguntou se eu estava fazendo a escolha certa. E quem neste mundo sabe se está fazendo a escolha certa??

“Se, em certa altura, tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita. Se, em certo momento, tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim. Se, em certa conversa, tivesse dito as frases que, só agora, no meio-sono, elaboro – se tudo isso tivesse sido assim, seria outro hoje e talvez o universo inteiro fosse insensivelmente levado a ser outro também”.

Em 1755, Lisboa passou por um terremoto. Que provocou um tsunami, que causou um incêndio, que contaminou a água e culminou na peste. O trágico não vem a conta-gotas, diria Guimarães Rosa. Hoje, olhando para essas ruas impecavelmente restauradas, penso que a gente se recupera de qualquer coisa. Ou não se recupera de nada e segue aquela lógica do Fitzgerald: um homem não se recupera de tais estremecimentos – ele se torna uma pessoa diferente e, eventualmente, a nova pessoa encontra coisas novas para se preocupar.

O problema de morar numa cidade indubitavelmente bonita é que você nunca sabe se realmente gosta do local ou se ele apenas te conecta com seus arquétipos de perfeição. É uma gaiola dourada. Meus dias de merda no último inverno pareciam cenários do Pinterest. Uma vez, no muro de um país do norte, havia um grafite: coisas extraordinárias estão sempre acontecendo em outro lugar. A sentença parecia deslocada por que estava escrita numa paisagem fabulosa, num país de primeiro mundo, como alguém poderia desejar estar em outro lugar? Vejo que, em qualquer cenário, a frase cabe tranquilamente.

Foucault diz que Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação. O coitado não precisava saber de tanto. As frases mais difíceis que ouvi na vida tinham conjunções adversativas de moer o espírito e, no final das contas, nem eram necessárias. Decisões ruins já falam por si, mas uma frase errada num momento crítico só fixa legenda à tragédia, nos dá material para mastigar neuroses pelo resto da vida. Recuei para não pronunciar nenhuma idiotice. Talvez, um dia, eu saiba exatamente o que deveria ter dito no salão da embaixada. Dispomos de uma gramática com mais de 400 mil palavras e, até hoje, eu não consigo pensar em nenhuma que não quebrasse o coração de alguém.

“Quer morrer no mar, mas o mar secou.

Quer ir para Minas, Minas não há mais.”

Quando cheguei, eu nunca tinha ouvido falar de Sintra. Fui conhecer com duas colegas também novatas. O desembarque do trem foi um arrebatamento eufórico: as casas, as lojas, tudo parecia incrível, corremos por aquela praça a tarde inteira. No dia seguinte, nos explicaram que a gente não havia chegado à Sintra, aquela era a praça do desembarque, uma área de serviços, a cidade ficava mais à frente. Adorando o engano, respondi rindo: queridos, parem, a gente não precisava saber disso!

“Vou passar a noite em Sintra por não poder passá-la em Lisboa, 

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. 

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência 

Sempre, sempre, sempre

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma. 

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida.”

Não sou boa em abrir o jogo. Arregalo os olhos, aceno sinais, mas não consigo dizer ao outro que o chapéu dele está pegando fogo. Em francês, não é possível construir uma frase sem que o sujeito esteja exposto: je, tu, il. Mas, em português, dá pra escrever uma enciclopédia usando apenas o sujeito oculto: descobri tarde, tentou muito, quebramos a cara. Quem? Eu, ele, nós. O interlocutor compreende.

Ou assim a gente supõe.

Em árabe, há mais de 100 palavras para designar camelo. Em inglês, o substantivo mais repetido é tempo. Em português, a palavra mais falada é coisa, que pode ser usada para definir camelo, tempo, dinossauro, asteróide ou qualquer outro substantivo do nosso idioma. A nossa palavra mais importante não tem significado próprio, ela sinaliza algo que já estaria evidente no contexto.

Ou assim a gente supõe.

Num dos nossos primeiros passeios, eu tirei uma foto sua na Regaleira. Você tinha 25 anos. Todos os anos em que voltei, refiz a foto no mesmo lugar. Vi aparecerem os seus primeiros óculos, os primeiros fios brancos, as primeiras preocupações. Sempre um perfil fugidio, dessas belezas que vão mudando com a paisagem, num fluxo imprevisível de dilúvio, calor, granizo, primavera. Ajusto o foco, de novo. Dessas metamorfoses que a gente não sabe aonde vão dar e quer estar ali para ver.

Quando ainda cursava Antropologia, me falou sobre o conceito de não-lugar, de Marc Augé. Espaços que não são um destino em si, mas um local de trânsito: um corredor, um elevador, uma rodoviária, uma sala de espera. Ninguém diz que está saindo de casa para ir ao viaduto, eles são um preâmbulo, um hiato. Como esta ponte onde estamos passando agora? Sim. E por quê você quis pesquisar sobre isso? Não sei. Na Guerra Fria, quando a União Soviética e os americanos resolveram travar uma guerra, não o fizeram em suas casas, mas no Vietnã, na Alemanha, no Afeganistão. Acho que países inteiros já foram considerados um não-lugar. E penso que todo mundo já foi um hiato na vida de alguém.

“Quando estão juntos, satisfaz-se em fitá-la, em ouvi-la, em observar-lhe as pupilas e o movimento dos lábios a um metro de distância dos seus olhos. Enquanto fala com ele, Mariana pertence-lhe.”

Hugo Mãe conta num romance que conheceu o Esteves num asilo, aquele que é citado por Fernando Pessoa no poema Tabacaria: é o Esteves sem metafísica. Esteves seria um rapaz de entregas que trabalhava na rua onde o poeta costumava fumar e, anos depois, ele teria ficado orgulhoso de ter sido citado, ainda que de maneira irônica: sem metafísica? Que inverdade! Achei o caso engraçado. Parei um minuto para pesquisar se era mesmo real este encontro no asilo e o que teria acontecido depois, mas algo me deteve. A história era ótima. Tão portuguesa. Carregar esta dúvida seria um privilégio.

“Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais”

Encantos deste inverno: uma película de gelo sobre a janela de manhã. O sótão alugado, a experiência de viver dentro de um telhado. Todos os reencontros, mesmo os inesperados e constrangedores. Hambúrguer com cerveja no café da manhã. A biblioteca da universidade.

Tristezas deste inverno: saudades da família. Uma noite de chuva dentro do transporte público sublinhando o desconforto burguês de não possuir um carro. Xenofobia nas lojas, nos bares, no trânsito. O aquecedor que vazava gás e fazia sonhar com o Terceiro Reich. Uma frase do filme de Curtis Hanson: Esta é a cidade dos anjos e você não tem asas.

Sento-me sobre o telhado, de madrugada. Fito o Tejo lá embaixo, como um deus que descansa no sétimo dia da criação. Acho que tenho com essa cidade uma dessas relações obsessivas que possuímos com todo mundo que já nos deu o fora. Faculdades que nos reprovaram, festas em que fomos barrados, empregos que nos dispensaram, filhos da puta em geral. Me pergunto se não voltei só pra ter a oportunidade de mandar tudo isso à merda. É possível. Sou capaz de apontar um canhão para matar um mosquito.

But I’m a creep, I’m a weirdo. 

What the hell am I doing here?

I don’t belong here”

Desculpa por não querer ficar. Desculpa por ter chegado tão longe para, no final, dizer que preciso da minha aldeia. O que a gente é e o que a gente está são coisas diferentes, então eu também entendo o seu silêncio – nós somos próximos, mas estamos distantes. Agora, da janela do táxi, a avenida da Liberdade passa tranquila, até amistosa e, mesmo o aeroporto – onde já embarquei mais de vinte vezes e nunca me pareceu um lugar fácil ou familiar – já não assusta. Todas as coisas parecem acessíveis quando a gente já não precisa mais delas.

“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”

É o fim de uma era, gajo. Aqui se acaba a nossa década de Lisboa.

É a última chamada.

E agora Inês é morta.

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(19 de abril de 2019)

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“Não te rendas, por favor, não cedas:
mesmo que o frio queime,
mesmo que o medo morda,
mesmo que o sol se ponha e se cale o vento, ainda há fogo na tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, por que eu te amo.”

(Trecho do poema Não Te Rendas, do uruguaio Mário Benedetti)

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– Você encaminhou esses papéis junto com o resto?

– Não.

– Hum.

Às vezes, eu me lembro dos hipopótamos de Pablo. Talvez você já conheça essa história. Com certeza, conhece a história de Pablo Escobar. Ele morreu há mais de vinte anos e continua dando trabalho para a polícia de um jeito que nem ele mesmo poderia imaginar. E olha que ele era um cara bem imaginativo quando se tratava de dar trabalho à polícia.

No auge do Cartel de Medellín, Escobar criou um rancho. E achou que cães de guarda não dariam conta de fazer a segurança da propriedade. Procurou uma solução mais eficaz. O que poderia ser mais feroz e violento e sanguinário do que um doberman faminto? Um hipopótamo, é claro. Importou quatro da África. Na ocasião, empolgou-se com a ideia e trouxe também girafa, hiena, rinoceronte, criou logo um zoológico e, na impossibilidade de importar dinossauros diretamente do período Cretáceo, mandou fazer uns de concreto.

Quando Escobar morreu, os animais foram removidos para os zoológicos de Medellín e Bogotá, com exceção dos dinossauros de concreto e… dos hipopótamos. Por que foram esquecidos. Ou, talvez, por que fossem igualmente pesados. Os quatro ficaram no rancho abandonado. Três fêmeas e um macho. E eles foram se multiplicando. De vez em quando saía no jornal uma notícia misteriosa sobre vacas que apareciam esmagadas ou casas destruídas, depois sobre filhotinhos redondinhos e fofos que apareciam perto das escolas e eram a alegria das crianças. Teve pai que levou hipopótamo para casa, teve outro que levou três e alimentava com leite na mamadeira, a maioria da população criava afeto sem saber do problema em que estava se metendo (quem nunca?). Não demorou para aparecerem hipopótamos adultos soltos nas cidades, atravessando a faixa de pedestre, destruindo carros, correndo atrás das pessoas – tudo bem Jurassic Park, Pablo iria adorar. E começou a caçada aos hipopótamos. Um comeu o braço de alguém, abateram o bicho e a população protestou. Falaram em castração, o povo levantou faixas: que castrem os políticos. Além de onerosa, a castração em massa seria insegura para os veterinários e bastaria um macho ficar de fora para começar tudo de novo. Não poderiam ser removidos para a África, pois levariam doenças diferentes para lá. Não caberiam mais num zoológico. Tentaram cercas elétricas e um hipopótamo morreu eletrocutado e eles realmente não queriam matar o coitado. A população comeu o hipopótamo morto, mas a carne não era confiável, podia transmitir doenças perigosas, houve um rebuliço na segurança sanitária e na diplomacia internacional, que não entendeu a morte do animal e questionou publicando cartas e fotos nos jornais do mundo inteiro. No meio disso, um bando deles interditou as estradas e invadiu bairros residenciais – e os mesmos policiais que passaram a vida correndo atrás do Escobar agora passam a vida correndo atrás dos hipopótamos do Escobar e esta história não tem final por que eles continuam se multiplicando e sendo perseguidos e, até hoje, ninguém sabe o que vai acontecer.

O curioso é que aqueles quatro primeiros hipopótamos que foram esquecidos ainda existem – e vivem bem tranquilos num lago. O macho se chama “O Velho” e eu fico aqui pensando, peraí, será que o maluco do Escobar reencarnou no bicho, olhou em volta e pensou: A PORRA DA COLÔMBIA É MINHA e partiu para reconquistar o país? Ou será que é mesmo sina daquele povo ficar brigando por umas entidades que metade da população admira e a outra metade quer ver morta, numa polarização bem brasileira – enfim, cada nação com o *excêntrico* que merece – insira aqui o nome do político lunático da sua preferência. De fato, talvez por todas essas semelhanças, devo mais do que nunca declarar a minha eterna simpatia pela Colômbia e seus acontecimentos desbaratados, notícias cabulosas, indubitavelmente o berço do Realismo Fantástico, cheia de gente doida, muito amor.

Mas eu só comecei a contar essa história toda para dizer que hoje eu estava na paz da minha residência quando me ligaram para perguntar sobre um pequeno deslize que cometi. Algo desimportante. Um lapso banal. Toda vez que eu cometo uma falha que eu já sei QUE VAI VIRAR UMA PATIFARIA OLÍMPICA E EMBORQUILHAR NUM CATACLISMA ÉPICO eu paro, respiro fundo e penso comigo mesma: olha aí a porra do hipopótamo de Pablo.

Ainda não deu merda.

Mas vai dar.

.

C-iPBB9WAAAd9LZ

Fontes: Super Interessante, @KarlFelippe, National Geographic

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A verdade é que eu só me interessei por essa história depois que disseram que eu teria que prestar depoimento ao juiz sobre o assunto, explicar como tudo começou e eu – bem, eu não tinha ideia do que se tratava. Como naquele livro do Kafka em que o cara é convocado pela Justiça e passa as 300 páginas da trama tentando descobrir, afinal, por qual crime mesmo ele estava respondendo – meu nome constava no inventário, eu não sabia como, nem o motivo. Pedi para ler o processo, novos documentos foram aparecendo, algumas cartas e cada página descortinava sobre pessoas conhecidas um passado que eu ignorava por completo. O mar não é só o que se vê da praia, veja bem.

Desde então, tive conhecimento de episódios familiares dos quais tomarei a liberdade de contar apenas este simplesmente por que ele virá a público frente ao juiz dentro de alguns dias – ou seja, não há mais motivo de segredo, todos saberão. Além de que ele é apenas um parêntese isolado dentro do enredo complexo do clã. No mais, não tenho interesse em cultivar fantasmas puxando meu pé pelas próximas madrugadas.

A parte em que eu entro nesta história aconteceu há uns dez anos atrás.

Eu estava desembarcando em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Inverno escuro, neblina fechada, eu subindo a serra para ir à casa de um tio-avô que ainda não conhecia. O plano era morar lá para terminar os estudos. Eu tinha por volta de 25 anos – aquela idade em que tudo parece definitivo: ontem você tinha 18, amanhã fará 40 e sua vida precisa desesperadamente de um rumo assertivo – e eu achava que sair de Salvador mudaria algo. Foi uma das tantas vezes em que eu achei que sair de Salvador mudaria alguma coisa. Nunca mudou nada. Mas eu ainda não sabia disso.

A porta do apartamento estava aberta. Encontrei um senhor quieto na varanda lendo o jornal. Uma bengala, uns olhos azuis, um sotaque português e um papagaio com o costume macabro de chamar pelo nome de pessoas que já morreram. O nome do papagaio era Inácio e o nome do meu tio – bem, não vem ao caso. Mas vamos chamá-lo de Tristão. Tristão recebeu-me com fotografias antigas, velhos casos da nossa família e conselhos sobre o sentido da vida. Foi uma tarde agradável, cheia de nomes e datas, dormi no quarto de hóspedes e sonhei em preto e branco. Os pedaços da conversa que eu não compreendia, atribuí ao jeito não-linear que os idosos têm de narrar suas coisas, mas me enganei – foram lacunas que só começaram a fazer sentido agora. Só quem nasceu numa família engendrada como a minha entende que há coisas que jamais serão faladas – todos podem passar gerações explicando sobre como as paredes andam desgastadas, sobre como o telhado já não é o mesmo, sobre como tem chovido nos últimos anos, mas ninguém anuncia que a casa vai cair. Até que a casa caia. No meio de uma frase que me parecia completamente desimportante, ele fez uma pausa para dizer que o que a gente se esforça para esquecer é o que domina a nossa vida. E deixou ficar um silêncio.

Foram apenas 24 horas em Petrópolis. Tudo que ouvi sobre a inutilidade de se tentar escapar do próprio destino parecia fatalmente direcionado a mim e eu decidi voltar para Salvador. Me despedi realmente agradecida. Dentro de algum tempo, soube que Inácio estava chamando o nome de Tristão junto com o de outros falecidos dentro da varanda vazia. Achei triste. E foi a última notícia que tive de lá.

Uma década depois, os advogados bateram na minha porta. Uma convocação para depoimento, perguntas que eu não sabia responder. Há seis meses estou montando este quebra-cabeça.

Pelo que entendi, foi assim.

Tristão nasceu em Portugal durante a guerra. Cresceu na Ilha de Madeira e emigrou ainda rapaz para morar com um tio do Rio de Janeiro. As cartas narram o seu deslumbramento com a cidade. As ondas quebrando no bairro de Laranjeiras, o verão que não terminava nunca – um calor de derreter catedrais, diria Nelson Rodrigues. Mas nada lhe tirava mais a respiração quanto os olhos verdes da esposa do seu tio.

Nós vamos chamá-la de Isolda. E devo dizer que não há uma linha sobre ela nas cartas à família, mas há no depoimento de uma ex-funcionária da casa: uma esposa muito alva com olhos muito verdes. Como num grifo de Machado: “aqueles olhos eram duas esmeraldas nadando em leite”. Segundo a funcionária, foi uma convivência que durou anos – as conversas depois do jantar não terminavam nunca, talvez como em A Missa do Galo: Isolda cogitando trocar os quadros da parede, sugerindo gravuras, ele comentando sobre personagens de ópera – num suplício silencioso, de cortar o coração. O tio não percebia, ocupado demais com negócios, política e amantes. Tristão pensava em fugir com ela. Um dia, de repente, o tio percebeu. Expulsou-o de casa depois de uma surra.

Nunca voltou a Portugal, não saberia como explicar o acontecido à família, seria um escândalo. Não tinha ninguém no Brasil. Morando num quarto de aluguel, Tristão trabalhou por muitos anos e, segundo ele, foram décadas que passaram como dias. Comprou um apartamento em Petrópolis, casou-se tarde e, na época, talvez por quê não tivessem filhos, meu pai, ainda criança, morou com eles por dois anos, onde o batizaram. Quando voltou para casa de minha avó, meu pai contava histórias sobre o papagaio Inácio. Só depois chegou ao apartamento de Tristão um telegrama que mudaria as coisas: anunciava que o velho tio havia falecido com dívidas e que Isolda havia sido despejada da casa de Laranjeiras.

Neste momento, caro leitor, devo fazer uma pausa retórica para perguntar: sabe qual a diferença entre uma novela e uma tragédia? É que, na novela, há um vilão. Já, na tragédia, o vilão é o acaso. São os reveses desbaratados do destino o grande antagonista de uma tragédia. E “o acaso é um deus e um diabo ao mesmo tempo”, não é mesmo? Pois bem.

Ele não dormiu naquela noite. Estava exasperado – escreveu a um amigo próximo. Passou a amanhã escolhendo as palavras. Na mesa do almoço, num tom moderado, leu o telegrama à esposa e sugeriu que acolhessem a tia em casa para que fosse morar com eles. Argumentou que a boa senhora o havia abrigado nos dias de juventude. Que o apartamento era grande. Que seria boa companhia.

Insistiu no assunto, mas sabia que aquilo estava errado. Sabia que era possível, inclusive, ajudar Isolda de alguma outra forma. O amigo, ciente do que estava acontecendo, escreveu desaprovando da ideia. Mas ele não podia escapar à tentação de tê-la novamente à mesa de jantar. Duas esmeraldas nadando em leite. Era a oportunidade de uma vida inteira. A esposa cedeu, inocente de tudo. E a chegada de Isolda iluminou a vida dele como um sol entrando num quarto.

“Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos”. As conversas depois do jantar eram as mesmas. Não eram jovens e estavam vivendo o auge de suas vidas numa fase em que a maioria das pessoas “vive com o verdadeiro rosto na nuca, olhando desesperadamente para trás”. Mas havia, outra vez, um triângulo. E, infelizmente ou felizmente, é dada à natureza feminina uma perspicácia que os homens desconhecem. A mesma paixão que cresceu durante anos invisível sob as barbas do tio de Tristão foi logo percebida pela esposa dele. Ela investigou o passado e a ex-funcionária da casa de Laranjeiras entregou tudo. Uma aberração. Uma imoralidade. Persuasão, Jane Austen, décimo capítulo. Dizem que, naquele momento, a emoção corroeu os nervos da esposa, lhe causou um mal súbito. Morreu pouco depois. Parentes diziam: morreu de desgosto.

E era o segundo escândalo que atravessava a vida dos dois.

Cartas desenrolam um novelo de culpa e tristeza. Eram duas pessoas sozinhas, não tinham ninguém. Continuaram no apartamento de Petrópolis. Os vizinhos comentaram a notícia, as pessoas do bairro espalharam boatos e, com o passar dos anos, o assunto foi caindo no esquecimento. Sempre há intrigas mais frescas e vexatórias a serem contatas. As antigas vão perdendo força e, de resto, a velhice cobre a todos com um manto de dignidade acima de qualquer suspeita. Todo pacato casal de idosos merece simplesmente ser deixado em paz.

Eles viveram juntos durante trinta anos.

Ele morreu em 2009 e, ela, em 2017. Na época em que estive lá, conheci Isolda na hora do jantar – mais idosa do que ele, mais disposta do que eu. Nunca oficializaram a união e até hoje há problemas com o inventário por causa disso. Perguntei por Inácio, o papagaio: depois da morte dela, teimava em voar sem destino pelas redondezas e, um dia, não voltou mais. Dizem que chamou tanto pelos mortos que os fantasmas vieram buscar. Ainda não sei exatamente por que apareci no testamento como herdeira do apartamento de Petrópolis e certamente o juiz irá questionar qual o meu laço com o casal em vida – será ridículo informar que foram apenas 24 horas de convivência, mas é a verdade.

Bem, ao menos até onde sei, esta é a história do meu tio Tristão. A história dos outros parentes eu não posso contar, mas são simplesmente inacreditáveis.

Às vezes, me pergunto se as coisas poderiam ter sido diferentes pra eles. E se ele tivesse voltado sozinho para a Ilha de Madeira? E se se aquele telegrama nunca tivesse chegado até Petrópolis? Jamais saberemos.

Confesso que, desde que esta Caixa de Pandora foi aberta, o que mais tem comovido esta minha alma irremediavelmente inclinada ao romanesco tem sido reconhecer o enredo dos clássicos em memórias de família. Hobin Hood, Os Maias, Os Belos e os Malditos, Tristão e Isolda. Como se tudo que já li na vida fosse um presságio da minha ascendência e não fosse necessário à ficção inventar mais nada, já que nenhuma criação pôde superar a realidade.

“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que os meus pais faziam antes que eu nascesse”. “Venho de longe, de uma pesada ancestralidade”. “As estirpes condenadas a cem anos de solidão não têm uma segunda oportunidade sobre a terra”. “Infelizmente, todo poder do mundo não pode mudar um destino”.

É isso.

Sinto que todos os meus dramas estão justificados. A minha genética é pura literatura.

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Estava procurando uma tirinha do bode gaiato na internet fui clicando em tudo comprei um bode de Petrolina por 500 reais sem querer estou tentando cancelar socorro

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Uma vida resumida em:

– Senhora, identificamos na sua fatura uma compra de 700 reais de pizza e 500 reais de sorvete feitas ontem no município de Trancoso, às 22h, a senhora reconhece essa compra?

– INFELIZMENTE, não.

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