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Posts Tagged ‘mariana miranda’

“Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.

Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva.”

(Bertolt Brecht / Para Ler de Manhã e à Noite, no livro Poemas 1913 – 1956, pág. 143)

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A gente se conheceu num quarto de hotel. Foi isso mesmo. Numa viagem a trabalho, sem que eu soubesse, a empresa me alocou no mesmo apartamento que uma desconhecida. Desavisada, a desconhecida abriu a porta e me encontrou sentada na poltrona dela. O tipo da situação que tinha tudo para ser péssima, mas a estranha tinha senso de humor – olá, invasora, eu sou a Jana.

Aquele era o único quarto vazio no único hotel de uma cidadezinha aleatória. Cada uma ocupou uma cama e dividimos muitas histórias durante uma semana. Eu estava cobrindo um evento num acampamento do Movimento Sem Terra, ela era uma indígena convertida aplicando uma pesquisa demográfica. Ficamos amigas quase imediatamente. Ela me acompanhava nas entrevistas, eu ajudava na aplicação dos questionários e a gente terminava a noite na praça. Jana tinha a minha idade, mas parecia muito mais jovem e tranquila. Foi a primeira pessoa no mundo a questionar o número de chaves do meu chaveiro – quantas responsabilidades…

Ela não tinha redes sociais nem celular e, quando a semana acabou, eu imaginei que ia ser difícil manter contato. Mas costumo confiar que o mundo dá um jeito de fazer os bons amigos se reencontrarem. Em outra viagem a trabalho, na Chapada Diamantina, eu estava passando por uma cidadezinha ainda menor e, de repente, vi Jana do outro lado da rua. Nem acreditei. Fiquei tão feliz!Pedi ao motorista que parasse a van, pedi aos colegas que aguardassem um minuto, saltei do carro correndo só para dar um abraço. Ela estava na calçada, encontrando uns rapazes. Quando me viu, eu levantei os dois braços:

– Janaaaaaa!!!

– Oi.

Ela respondeu GELADA. Não sorriu. Não estendeu a mão. Não parecia feliz de me encontrar.

– Tudo bem com você??

Silêncio. Eu não sabia o que dizer. Fiquei sorrindo, sem graça, os amigos dela olhando pra mim. Ainda insisti:

– Que bom ver você, né? Estou de passagem.

– E eu também já vou embora.

Fui me despedindo. Voltei para o carro. Ela sumiu pela outra rua. Eu não entendi nada.

Foi horrível.

No caminho, meus colegas perguntaram se eu tinha me confundido e cumprimentado a pessoa errada. Respondi que sim, que foi um engano. Um doloroso engano. Fiquei calada o resto do trajeto remoendo o incidente e passando por aqueles três estágios que todo paranóico conhece bem: 1) a insegurança: eu disse alguma coisa errada? Será que ela estava chateada comigo? Será que ela mudou? 2) a raiva: custava estender a mão? Tinha necessidade de me dar esse gelo na frente de todo mundo? Então era tudo falsidade o tempo todo?? 3) por fim, a certeza de que EU ESTAVA LOUCA. Senhoras e senhores, saibam que todos os paranóicos do mundo carregam a mesma aflição: achar que inventaram uma relação que nunca existiu. Desconfiam o tempo inteiro que aquela afinidade pode ser uma criação de suas cabeças, uma projeção sem reciprocidade, algo que, para o outro, nem era tão importante assim. Amigos imaginários, quem nunca? Uma dúvida simplesmente a. tor. men. ta. do. ra.

Gente, isso me mata.

Por fim, eu fiquei me sentindo apenas uma otária e esqueci o assunto. A gente cata os próprios caquinhos e segura na mão da dignidade, né? Deixei pra lá. Paciência. A viagem correu bem. No caminho de volta, a equipe inventou de parar exatamente naquela cidadezinha para almoçar e eu sabia que poderia encontrar Jana novamente. Seria péssimo. Seria constrangedor. E é claro que encontrei. Ela me viu e veio correndo me abraçar:

– Amiga, se não fosse você durante aquele assalto! Foi Deus quem te mandou. Eu nem sei como agradecer!

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A cada convite para lives no Instagram, acho que fica mais evidente essa divisão entre pessoas fitness e pessoas Netflix. Já havia percebido essa rivalidade antes da quarentena e acho que os dois grupos têm muito em comum: eles não saem do lugar e seus progressos são numéricos. Em cima de uma esteira ergométrica ou em cima de um sofá, os dois maratonistas avançam – é possível medir os quilômetros corridos e os capítulos assistido. Mas não vão a lugar nenhum. Não há deslocamento real e os corpos repetem os mesmos movimentos todos os dias numa obediência que deixaria Foucaut comovido.

A verdade é que números tornam a vida administrável. E atividades não numéricas não elegem vencedores. Por exemplo, como obter números que avaliem o êxito de uma experiência de camping? Ou de marcenaria ou de teatro? Só é possível pontuar em atividades que envolvem repetição. E repetições não criam nada.

(Isso não é bem uma crítica. Pode segurar seu squeeze ou seu controle remoto sem constrangimento. Só acho que a gente nunca soube mesmo o que fazer com essa tal liberdade de ir e vir)

 

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Hoje, me peguei pensando numa quarentena ao contrário. Imaginei o aparecimento de um vírus que, ao invés de nos manter confinados, nos expulsasse de casa. E nos obrigasse a estar em constante movimento. Do trabalho para o shopping, do shopping para o cinema, do cinema para a academia, da academia para a faculdade. Todo mundo dormindo poucas horas por noite, proibido de desacelerar. Do escritório para o restaurante, do restaurante para o banco, do banco para o mercado, do mercado para a festa. Consumindo, teclando, trabalhando, produzindo. Sem descanso. Sem trégua. Não seria um inferno?

Talvez esse vírus também te pareça familiar. A gente já estava doente e não sabia.

 

 

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Esta quarentena está me fazendo lembrar de tantas outras. Talvez você tenha já tenha vivido alguma. Momentos em que, de repente, seus planos foram adiados e você entrou num período cinzento de espera. Um problema, um emprego, uma doença, um ambiente social indesejado. Se uma situação já te aprisionou por muito tempo, você já viveu uma quarentena.

E acho que os sintomas de qualquer quarentena são sempre os mesmos.

Você tem a sensação de que sua vida está parada. Os dias parecem longos e iguais. Você perde muito tempo na internet, fica irritado por bobagem. Come o tempo todo. Dias e noites se misturam numa longa insônia – hoje é quarta ou quinta? Hoje é domingo. E, amanhã, também.

Geralmente, no início do isolamento, a gente faz questionamentos, fica teorizando sobre o problema. Depois, se sente apenas exausto e até evita falar no assunto. Começa montando um cronograma para superar aquela fase ruim – estudos, exercícios, meditação – mas tudo termina em frustração no sofá. Você arruma as gavetas, joga muita coisa fora. Encontra fotos antigas. Pensa em telefonar para pessoas que você não vê há anos. Você se arrepende das coisas que não fez quando ainda dava para fazer alguma coisa. As lembranças te dão um lugar para onde ir quando você precisa continuar aonde está.

Numa quarentena, você vê a chuva pela janela do apartamento. A palavra apartamento significa apartado, separado, isolado. Sim, você se sente muito apartado. Há momentos em que você se pega tendo inveja de quem está bem, curtindo a vida. Em outros, você se sente culpado por todos os seus privilégios. Você reflete sobre a solidão e a vulnerabilidade no mundo. Você se sente sozinho e vulnerável.

Você pode sentir falta de ver gente. Ou sentir falta da pessoa que você se tornava quando estava em público. Como naquele conto de Machado de Assis, onde um militar é designado para vigiar um sítio vazio durante semanas. Mesmo estando completamente sozinho – poderia andar pelado, se quisesse – ele veste a farda todos os dias. Não gostava do que via no espelho quando estava sem ela. Se sentia perdido sem aquela farda.

Bem, acho que toda rotina social inclui muitas fardas. E uma quarentena repentina te despe de um jeito cruel – ela revela tudo aquilo o que você não é. Você não é o seu emprego, a sua vida social, o seu modo de vestir, de viajar. Você não é o seu talento para deixar uma boa impressão nas pessoas – especialmente quando não há ninguém para quem exibir essa figura fabulosa que você imagina ser. Só sobra, no espelho, um ser humano despido de tudo. Apenas isso. Você consegue gostar desse cara?

A pior quarentena é a que não tem data para acabar. Você fica à deriva pelas redes sociais, esperando algo acontecer – Esperando Godot, diria Beckett. Eu costumo comparar esses isolamentos a uma viagem marítima. Imagine que um deslocamento de 100 km por terra significa ver paisagens, pessoas, movimento. Já os mesmos 100 km num navio equivalem a um horizonte estático, sem início nem fim, onde você perde a noção dos dias. Você se sente confinado naquela imensidão, sem saber se falta um dia ou um ano para chegar a algum lugar.

E, já que falamos em oceano, me diga: quem você levaria contigo para uma ilha deserta? Essa era uma pergunta comum nos antigos questionários adolescentes. Era engraçado por quê todas respondiam a mesma coisa: o Leonardo DiCaprio. Hoje, imagino que o isolamento que a maioria de nós está vivendo não está acontecendo numa ilha deserta – lamento, gente – e tampouco nos deram chance de escolher com quem dividir essa ilha – desculpa, Léo – mas a pergunta é tão atual. Uma quarentena congela a nossa vida subitamente no hoje. Se você ficou confinado exatamente com quem você escolheria, você é uma pessoa de sorte. Isso inclui quem desejou estar apenas consigo mesmo. Mas, se sua ilha não é nada do que você sonhou, talvez algo precise mudar.

Essa história de navios e ilhas me fez lembrar de O Amor nos Tempos do Cólera. No último capítulo, levantam a bandeira amarela: é anunciado que o navio entrará em quarentena. Que alegria. Finalmente eles poderiam navegar sem roteiro. Agora estavam sozinhos, longe de tudo, livres do mundo e tinham a chance de viver intensamente aquele momento. Era uma grande oportunidade. A quarentena é o final feliz.

Cientificamente, a palavra quarentena significa o prazo para algo se revelar: um sintoma, um diagnóstico. Sei de quarentenas que duraram dias, outras que duraram anos. Sei de gente que passou a vida aprisionado onde não queria estar e de gente que nunca percebeu que estava aprisionado. Isolamentos fazem a gente questionar se estamos vivendo a vida errada, na cidade errada, no planeta errado. Mas também nos aponta dádivas que, de outro jeito, a gente não perceberia.

Quarentena é revelação. E um navio bem grande, do tamanho do mundo, está em quarentena. É uma tragédia. E é, também, uma grande oportunidade.

Acalme o coração. Levante a sua bandeira amarela.

Quantas quarentenas você já viveu? O que esta quarentena quer revelar para você?

 

 

 

 

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“Liberdade também era isso, não voltar. O amor existia em todas as direções. Ela pressentia isso. Que o amor estava para lá de qualquer direção.”

(pág. 23)

“Os livros são objetos cardíacos. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. (…) Era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tanto tempo. A morte não importa muito para os livros.”

(págs. 58 e 59)

“Uma menina do colégio perguntava-me sempre se queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda noturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.”

(pág. 59)

“Puseram sobre o parapeito da janela principal uma fotografia da igreja nos tempos antigos. Quando alguém pensasse no que ia lá fora, veria a igreja na sua melhor multidão e pensaria que estava ali tudo. Tudo ali, como se, através das pessoas, todos os lugares do mundo estivessem juntos.”

(pág. 76)

“Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ver as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.”

(pág. 85)

(Valter Hugo Mãe / Contos de Cães e Maus Lobos, 2019)

  

Neste livro, houve um conto que me tocou profundamente. Vou contar de cabeça, não sei se correto. Fala de um casal de idosos que mora numa pequena aldeia e que é amigo de um outro casal de idosos há muitos anos. Os primeiros moram numa casa na fronteira da cidade, ao pé da montanha, à beira de um precipício. O segundo casal mora no alto, no centro da cidade. Um dia, os que moram embaixo propõem que a festa de fim de ano fosse feita na casa deles. O casal do alto não aceita bem a ideia e acaba havendo um desentendimento na noite de Natal. No dia seguinte, o casal de baixo sobe até a cidade para cumprimentar o casal amigo e desfazer aquela briga desimportante. Mas são ignorados pelos dois, que fingem estar ocupados. Decepcionados, os dois velhinhos descem a ladeira e voltam para casa pensativos. Sentados na varanda, ficam olhando o despenhadeiro. E, de repente, sentem o chão se mover como num terremoto. Como se a cidade aumentasse de altura atrás deles e acentuasse o declive da ladeira, inclinando a casa para o precipício. Eles se assustam. Seguram-se um no outro e abraçam o cachorro. E o conto acaba.

Achei comovente. Imagino que qualquer pessoa que, em algum momento da vida, tenha habitado a fronteira das relações, entende a delicadeza desta metáfora. Foi a coisa mais singela que eu li este ano.

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Décimo segundo dia da quarentena. Ontem ficamos sem energia – sem internet, sem rádio, sem celular – e, hoje, deve faltar água. Mais um dia assim e vão me encontrar conversando com uma bola de vôlei. Tenho feito registros só para marcar este episódio histórico, mas, hoje, esse negócio de escrever sobre os bastidores de uma tragédia pública me pareceu meio macabro, tipo Diário de Anne Frank ou O Paciente Inglês. Dessas narrativas despretensiosas que as pessoas fazem quando acham que tudo vai ficar bem, quando ainda não entenderam que aquele cenário confuso diante delas é apenas. o fim. da linha.

A comida está acabando. Não estoquei nada – empatia social, mores – e não sabia que o mercado levaria sete dias para fazer a entrega, então o jantar de hoje foi gelatina com aveia. As crianças gostaram. Tenho mantido a casa entretida mesmo dentro da calamidade, um perfeito roteiro de A Vida é Bela. Quando fui procurar na dispensa algo para o café de manhã, entre potes de chá, orégano e mais gelatina, encontrei algo que me fez lembrar o ano de 2010. Meu Deus, que fase.

(Caro leitor, se você também viveu alguma coisa bizarra há 10 anos atrás, abrace seu Buda: esse é um ciclo que vai se fechar agora. Diria Bukowski: você só cai de um mesmo cavalo uma vez por década).

Voltemos a 2010. Devo lembrar que, naquela fase do período cretáceo, possuíamos poucas redes sociais, os celulares dispunham de fotos com baixíssima resolução e nenhuma internet móvel. Época horrível. Eu estava vivendo momentos de altos e baixos financeiros que, quando altos, tocavam as nuvens, quando baixos, mergulhavam no magma da Terra. Atribuo esta turbulência monetária ao fato de ter uma personalidade otimista – irresponsavelmente otimista – somada à certa ingenuidade juvenil. Até então, eu desconhecia esse abismo cognitivo que existe entre pessoas com menos de 30 anos e as que possuem mais de 30, esse portal que só se revela depois que você atravessa para o lado de cá e te faz rever os filmes da sua adolescência apenas para descobrir que os pais do mocinho estavam com razão o tempo todo. Eu era muito ingênua. Essa iluminação ainda não havia chegado a mim. Só lembro de, em junho de 2010, estar bem feliz vestida de vermelho na Champs-Elysees, jantando numa esplanada à luz de velas. Em julho, de ter levado um calote memorável. Em agosto, de estar vendendo os meus móveis na feira para pagar o aluguel.

Final trágico para uma bancarrota épica, sim?

na verdade, não. Era só o começo.

Infelizmente, os móveis não valiam tanto e, no fim do verão, fomos despejados. Pensei em desistir de tudo, mas eu estava obstinada por um projeto pessoal importante, era a chance da minha vida. Consegui alugar um porão num prédio histórico caindo aos pedaços, um depósito subterrâneo sem janelas, uma única lâmpada. Eu não sabia como seria o inverno ali. Ter vendido o tapete foi uma decisão errada, por que o piso foi ficando mais gelado a cada dia. A lareira não funcionava, muito mofo. As chuvas foram chegando, as infiltrações inundavam tudo e não dava mais para dormir no chão. Mas eu ainda estava otimista. Irresponsavelmente otimista. Eu achava que ia passar.

Não passou.

Meses depois, fomos despejados de lá também e embarcamos para a África – pela terceira vez – porém a África estava em guerra – de novo – e isso representou problemas ainda piores, mas o episódio que eu quero narrar foi um pouco antes. Foi naquele dia. O momento exato em que eu entendi que não dava mais para ser otimista. Aquilo não ia passar.

Era uma dessas tardes tristíssimas em que eu estava chegando do trabalho. Eu me perguntava o que ia acontecer com a gente naquele inverno. Me curvei para entrar no porão, tranquei a porta, tirei o casaco, acendi o fogareiro e fui ver o que restava na dispensa. Eu administrava as compras e percebi que havia algo errado. Os biscoitos tinham acabado, mas ainda havia arroz e sardinha. Enumerei os itens de novo e me dei conta do que estava acontecendo:

Meu namorado estava, há semanas, ALMOÇANDO BISCOITO DE COCO para que eu tivesse o que comer.

GENTE.

MEU MUNDO CAIU.

Eu estava causando problemas a outra pessoa. Eu fiquei paralisada com essa informação.

Eu não havia percebido antes. Entre todas as aquelas privações, por algum motivo, essa mudou tudo. Por que eu percebi que a culpa era minha. Do meu projeto de vida, da minha obsessão, do meu otimismo. Não falei nada sobre o assunto. Mas este dia marcou uma série de mudanças: eu entendi que precisava fazer algo, que aquela fase ruim não ia, magicamente, passar.

E devo dizer que nunca mais na vida eu comi biscoito de coco. Tomei horror. Arroz com sardinha também passou a me causar aflição. Enfim.

Depois de uma labuta colossal, finalmente, os meus planos deram certo. E tudo se ajeitou. Hoje, seria elegante concluir que todos estes episódios mudaram completamente a minha maneira de ser e que eu me tornei uma pessoa madura e ponderada, que não alimenta quaisquer projetos aventureiros irresponsáveis – mas a quem estamos tentando enganar, não é mesmo??? EU NÃO ME IMPORTO. Provavelmente ainda passarei por perrengues incríveis nesta vida, mas aprendi que não posso arrastar ninguém comigo para o fundo do poço. Meu coraçãozinho é bem Saint-Exupéry: a gente é responsável pelo que cativa.

Final feliz, vejam só. E dez verões e invernos sucederam-se no calendário gregoriano.

Em março deste ano, quando começou a quarentena, eu fui uma cidadã exemplar. Mantive uma calma celestial desde o início, ajudei a todos. Vai parecer louco o que eu vou dizer, mas, ao menos, foi apaziguador estar diante de uma crise que não fui eu quem criou. E não sou eu quem precisa administrar, conduzir, solucionar. Estamos vivendo uma pandemia, é um problema mundial. A dispensa está vazia de novo, mas é um alívio saber que a culpa não é minha.

Então, hoje à noite, em episódio não relacionado, fui resgatar uns alimentos no armário e encontrei algo surpreendente. BISCOITO DE COCO. Socorro! Ninguém sabe de onde veio. Concluí que ele foi trazido pelo Bukowski em pessoa, que levantou da cova catando os próprios pedaços e dirigiu-se pessoalmente à minha cozinha só para me lembrar que uma década já se passou. Que está começando outra. E que eu não posso deixar aquele cavalo me derrubar de novo.

Por absoluta falta de opção, o café de amanhã será esse mesmo, biscoito de coco. No almoço, teremos um cardápio sofisticado composto por salsichas em cubos acompanhadas de milho em lata. No mais, seguirei tocando violino no convés do Titanic, escrevendo diários sobre um futuro melhor. Vendendo otimismo nesta quarentena.

Isso vai passar. É claro que vai.

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kundera 2

Tereza (Juliette Binoche) e Tomas (Daniel Day Lewis) em A Insustentável Leveza do Ser, 1988.

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.

Tereza acompanha seu rebanho de novilhas, toca-as para a frente, mas há sempre uma a ser repreendida, pois as vacas jovens têm bom humor e se afastam do caminho para passear no campo. Karenin está com ela. Já faz dois anos que a acompanha no pasto. Em geral, se diverte muito sendo severa com as novilhas, latindo e ralhando com elas (seu Deus encarregou-a de reinar sobre as vacas e disso ela se orgulha). Mas hoje está andando com muita dificuldade, saltando sobre três patas; na quarta tem uma ferida que sangra. A cada dois minutos Tereza se curva e lhe acaricia o pêlo. Quinze dias depois da operação torna-se evidente que o câncer não foi debelado e que Karenin irá de mal a pior.

No caminho encontram uma vizinha que está indo para o estábulo, calçada com botas de borracha. A vizinha pára: – O que aconteceu com o seu cachorro? Parece que ele está mancando! Tereza responde: – Está com câncer. Está condenado – e sente a garganta apertar, quase não pode falar. A vizinha percebe as lágrimas de Tereza e fica indignada: – Pelo amor de Deus, não vai chorar por causa de um cachorro! – Não disse isso por maldade, é uma boa mulher, foi mais para consolar Tereza. Tereza sabe disso, mora no lugar há tempo suficiente para compreender que se os camponeses gostassem de seus coelhos como ela gosta de Karenin não poderiam matá-los e acabariam morrendo de fome no meio dos bichos. No entanto a observação da vizinha lhe parece hostil. – Sei – responde sem protestar, mas se apressa em dar-lhe as costas e continuar seu caminho. Sente-se sozinha em seu amor pelo cão. Pensa com um sorriso triste que deve escondê-lo mais secretamente do que escondesse uma infidelidade. O amor que se tem por um cachorro escandaliza.

Segue seu caminho com as novilhas que se esfregam umas nas outras, dizendo a si mesma que são bichos muito simpáticos. Pacíficos, sem malícia, às vezes de uma alegria pueril: parecem mulheres gordas, cinqüentonas, que fingissem ter catorze anos. Não existe nada mais comovente do que vacas brincando. Tereza as olha com ternura, e diz para si mesma (é uma idéia que lhe ocorre sem cessar há dois anos) que a humanidade é parasita da vaca, assim como a tênia é parasita do homem: agarrou-se à sua teta como uma sanguessuga. O homem é o parasita da vaca, essa é, sem dúvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem em sua zoologia.

Pode-se tomar essa definição como um simples gracejo e sorrir com indulgência. Tereza porém a leva a sério, e fica numa posição arriscada: essas idéias são perigosas e a distanciam da humanidade. Já no Gênese, Deus encarregou o homem de reinar sobre os animais, mas podemos explicar isso dizendo que ele apenas emprestou ao homem esse poder. O homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem “maître et propriétarie de la nature”. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.

As novilhas pastam no prado, Tereza está sentada sobre um tronco de árvore e Karenin estendida a seus pés, a cabeça recostada em seus joelhos. Tereza lembra-se de uma notícia de duas linhas que lera no jornal há uns dez anos: dizia que numa cidade da Rússia todos os cachorros haviam sido mortos. Essa notícia discreta e aparentemente sem importância tinha-lhe feito sentir pela primeira vez o horror que emanava desse imenso vizinho.

Era uma antecipação de tudo que viria depois: nos dois primeiros anos que se seguiram à invasão russa, não se podia ainda falar em terror. Já que toda nação desaprovava o regime de ocupação, era preciso que os russos encontrassem entre os tchecos homens novos e os levassem ao poder. Mas onde encontrá-los, uma vez que a fé no comunismo e o amor pela Rússia eram coisa morta? Foram procurar entre aqueles que alimentavam intimamente o desejo de se vingar da vida. Era preciso soldar, alimentar, manter alerta a agressividade deles. Era preciso primeiro treiná-los contra um alvo provisório. Esse alvo foram os animais.

Os jornais começaram então a publicar uma série de artigos e a organizar campanhas sob a forma de cartas de leitores. Exigia-se, por exemplo, o extermínio dos pombos numa cidade. Os pombos foram exterminados. Mas a campanha visava sobretudo aos cachorros. As pessoas estavam ainda traumatizadas com a catástrofe da ocupação, mas os jornais, o rádio, a televisão, só falavam nos cachorros que sujavam as calçadas e os jardins públicos, ameaçando a saúde das crianças, cachorros que não serviam para nada e ainda tinham que ser alimentados. Fabricou-se uma verdadeira psicose, e Tereza teve medo de que a população excitada se voltasse contra Karenin. Um ano mais tarde, o ódio acumulado (ensaiado primeiro sobre os animais), foi apontado para o seu verdadeiro alvo: o homem. As demissões, as prisões, os processos, começaram. Os animais puderam enfim respirar.

Tereza acaricia a cabeça de Karenin que descansa tranqüilamente em seus joelhos. Faz mais ou menos esse raciocínio: não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros moradores da aldeia, ou não poderia viver ali; e, mesmo com Tomas, é obrigada a se portar como mulher amorosa, pois precisa dele. Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos.

A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.

Uma novilha se aproxima de Tereza, pára, e olha para ela longamente com grandes olhos castanhos. Tereza a conhece. Chama-se Marketa. Gostaria de ter dado um nome a cada uma das novilhas mas não pode, são muitas. Há uns trinta anos certamente teria sido assim, todas as vacas do lugar teriam um nome (se o nome é o sinal da alma, posso dizer que elas tinham uma, apesar de desagradar a Descartes). Mas a aldeia tornou-se uma grande usina cooperativa e as vacas passam a vida em dois metros quadrados de estábulo.

Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça de Karenin, e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços.

Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo.

É este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastam do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da natureza”, prossegue sua marcha para a frente.”

 

(Milan Kundera / A Insustentável Leveza do Ser, 1982)

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“Tal foi Atlântida… hoje, o seu mistério

Sonho eterno do sábio e do romântico

Dorme no fundo do profundo Atlântico

O Atlântico, que imenso cemitério!”

 

(José Lopes, Ilha de São Nicolau, pág. 28)

.

“Nhô Cacai vem alimentar os seus filhos

Com histórias de sereias

Com histórias das farturas nas Américas

Os filhos acreditam nas Américas

E sabem dormir com fome…”

 

(Onésimo Silveira, Ilha de São Vicente, pág. 92)

.

“Por que dirão: eis um homem deste século,

um homem de África, debaixo da sua mangueira

e debaixo da sua papeira, um homem

com seu desejo de audiência e história,

sua voz aberta e sua digníssima pele, falando da África deste tempo e de seu povo

seus órgãos do canto.

Um homem que não habita seguro em sua freguesia (…)

e cai sobre a terra quando for tempo de cair

e de se juntar a seus pais, cara a cara, indo pelo caminho de toda a terra,

ao seu tempo, ao tempo determinado,

sem o lamento das Américas ou o escárnio da Europa.

Pois há um tempo para todas as coisas

e para todas as obras. E aqui vos digo:

há um tempo para este povo.”

 

(Timóteo Tio Tiofe, Ilha de São Vicente, pág. 94)

.

“Eis-me aqui, África

nas tuas entranhas

de onde, afinal

nunca saí.

Eis-me aqui, África

eis-me aqui,

aqui.”

 

(Mário Fonseca, Ilha de Santiago, pág. 104)

.

“Por que terias que me abraçar

e me chamar de mulher

e abrir a janela e inventar um sol

sussurrar uma canção?

Para quê?

Se foi o tempo de um cigarro?”

 

(Dina Salústio, Ilha de Santo Antão, pág. 114)

.

“Eu gosto de você, Brasil

porque você é parecido com a minha terra.

Eu bem sei que você é um mundão

e que minha terra são

dez ilhas perdidas no Atlântico,

sem nenhuma importância no mapa.

Eu já ouvi falar das suas cidades:

A maravilhosa Rio de Janeiro,

São Paulo dinâmica, Pernambuco, Baía de Todos-os-Santos,

ao passo que as daqui

não passam de três pequenas cidades.

Eu sei tudo isso perfeitamente bem,

mas você é parecido com a minha terra.

É que seu povo se parece com o meu,

é seu falar português

que se parece com o nosso,

ambos cheios de sotaque vagaroso,

de sílabas pisadas na ponta da língua,

de alongamentos timbrados nos lábios

e de expressões tenríssimas e desconcertantes.

É a alma da nossa gente humilde que reflete

a alma da sua gente simples,

ambas cristãs e supersticiosas,

sentindo ainda saudades antigas dos serões africanos,

compreendendo uma poesia natural

que ninguém lhes disse,

e sabendo uma filosofia sem erudição

que ninguém lhes ensinou.

O gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas,

dos seus catetês, das suas toadas de negros,

caiu também no gosto da gente de cá,

que canta e dança e sente

com o mesmo entusiasmo

e com o mesmo desalento também.

As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,

fazem lembrar as suas músicas,

com igual simplicidade e igual emoção.

Você, Brasil, é parecido com a minha terra.

As secas do Ceará são as nossas estiagens,

com a mesma intensidade de dramas e renúncias.

Mas há uma diferença no entanto:

é que os teus retirantes

têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,

ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem

porque seria para se afogarem no mar…

Nós também temos a nossa cachaça,

o grog de cana que é bebida rija.

Temos também os nossos tocadores de violão

e sem eles não haveria bailes de jeito.

Conhecem a perfeição de todos os tons

e causam sucesso nas serenatas

feitas de propósito para despertar as moças

que ficam na cama em noite de lua cheia.

Temos também o nosso café da Ilha do Fogo

que é pena ser pouco,

mas – você não fica zangado? –

é melhor do que o seu.

Eu gosto de você, Brasil.

Você é parecido com a minha terra.

O que é é que lá tudo é à grande

e tudo aqui é em ponto mais pequeno…

Eu desejava fazer-lhe uma visita

mais isso é cousa impossível.

Queria ver de perto as cousas espantosas que todos me contam de você

assistir aos sambas nos morros,

estar nas cidadezinhas do interior

que Ribeira Couto descobriu num dia de muita ternura,

queria deixar-me arrastar na onda da Praça Onze

na terça do Carnaval.

Eu gostava de ver de perto o luar do Sertão

de apertar a cintura de uma cabocla

– você deixa? –

e rolar com ela num maxixe requebrado.

Eu gostaria de enfim o conhecer mais de perto

e você veria como sou bom camarada.

Havia então de botar uma fala

ao poeta Manoel Bandeira,

de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima

pra ver como é que a Poesia receitava

este meu fígado tropical bastante cansado.

Havia de falar com você,

com um i no si

– “si faz favor” -,

De trocar sempre os pronomes para antes dos verbos

– “mi dá um cigarro?”

Mas tudo isso são cousas impossíveis – você sabe? – Impossíveis.”

 

(Jorge Barbosa, Ilha de Santiago, pág. 44)

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tirinha jorginho palavrao sala de aula porra e essa

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