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Posts Tagged ‘crônica’

– Você encaminhou esses papéis junto com o resto?

– Não.

– Hum.

Às vezes, eu me lembro dos hipopótamos de Pablo. Talvez você já conheça essa história. Com certeza, conhece a história de Pablo Escobar. Ele morreu há mais de vinte anos e continua dando trabalho para a polícia de um jeito que nem ele mesmo poderia imaginar. E olha que ele era um cara bem imaginativo quando se tratava de dar trabalho à polícia.

No auge do Cartel de Medellín, Escobar criou um rancho. E achou que cães de guarda não dariam conta de fazer a segurança da propriedade. Procurou uma solução mais eficaz. O que poderia ser mais feroz e violento e sanguinário do que um doberman faminto? Um hipopótamo, é claro. Importou quatro da África. Na ocasião, empolgou-se com a ideia e trouxe também girafa, hiena, rinoceronte, criou logo um zoológico e, na impossibilidade de importar dinossauros diretamente do período Cretáceo, mandou fazer uns de concreto.

Quando Escobar morreu, os animais foram removidos para os zoológicos de Medellín e Bogotá, com exceção dos dinossauros de concreto e… dos hipopótamos. Por que foram esquecidos. Ou, talvez, por que fossem igualmente pesados. Os quatro ficaram no rancho abandonado. Três fêmeas e um macho. E eles foram se multiplicando. De vez em quando saía no jornal uma notícia misteriosa sobre vacas que apareciam esmagadas ou casas destruídas, depois sobre filhotinhos redondinhos e fofos que apareciam perto das escolas e eram a alegria das crianças. Teve pai que levou hipopótamo para casa, teve outro que levou três e alimentava com leite na mamadeira, a maioria da população criava afeto sem saber do problema em que estava se metendo (quem nunca?). Não demorou para aparecerem hipopótamos adultos soltos nas cidades, atravessando a faixa de pedestre, destruindo carros, correndo atrás das pessoas – tudo bem Jurassic Park, Pablo iria adorar. E começou a caçada aos hipopótamos. Um comeu o braço de alguém, abateram o bicho e a população protestou. Falaram em castração, o povo levantou faixas: que castrem os políticos. Além de onerosa, a castração em massa seria insegura para os veterinários e bastaria um macho ficar de fora para começar tudo de novo. Não poderiam ser removidos para a África, pois levariam doenças diferentes para lá. Não caberiam mais num zoológico. Tentaram cercas elétricas e um hipopótamo morreu eletrocutado e eles realmente não queriam matar o coitado. A população comeu o hipopótamo morto, mas a carne não era confiável, podia transmitir doenças perigosas, houve um rebuliço na segurança sanitária e na diplomacia internacional, que não entendeu a morte do animal e questionou publicando cartas e fotos nos jornais do mundo inteiro. No meio disso, um bando deles interditou as estradas e invadiu bairros residenciais – e os mesmos policiais que passaram a vida correndo atrás do Escobar agora passam a vida correndo atrás dos hipopótamos do Escobar e esta história não tem final por que eles continuam se multiplicando e sendo perseguidos e, até hoje, ninguém sabe o que vai acontecer.

O curioso é que aqueles quatro primeiros hipopótamos que foram esquecidos ainda existem – e vivem bem tranquilos num lago. O macho se chama “O Velho” e eu fico aqui pensando, peraí, será que o maluco do Escobar reencarnou no bicho, olhou em volta e pensou: A PORRA DA COLÔMBIA É MINHA e partiu para reconquistar o país? Ou será que é mesmo sina daquele povo ficar brigando por umas entidades que metade da população admira e a outra metade quer ver morta, numa polarização bem brasileira – enfim, cada nação com o *excêntrico* que merece – insira aqui o nome do político lunático da sua preferência. De fato, talvez por todas essas semelhanças, devo mais do que nunca declarar a minha eterna simpatia pela Colômbia e seus acontecimentos desbaratados, notícias cabulosas, indubitavelmente o berço do Realismo Fantástico, cheia de gente doida, muito amor.

Mas eu só comecei a contar essa história toda para dizer que hoje eu estava na paz da minha residência quando me ligaram para perguntar sobre um pequeno deslize que cometi. Algo desimportante. Um lapso banal. Toda vez que eu cometo uma falha que eu já sei QUE VAI VIRAR UMA PATIFARIA OLÍMPICA E EMBORQUILHAR NUM CATACLISMA ÉPICO eu paro, respiro fundo e penso comigo mesma: olha aí a porra do hipopótamo de Pablo.

Ainda não deu merda.

Mas vai dar.

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C-iPBB9WAAAd9LZ

Fontes: Super Interessante, @KarlFelippe, National Geographic

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A verdade é que eu só me interessei por essa história depois que disseram que eu teria que prestar depoimento ao juiz sobre o assunto, explicar como tudo começou e eu – bem, eu não tinha ideia do que se tratava. Como naquele livro do Kafka em que o cara é convocado pela Justiça e passa as 300 páginas da trama tentando descobrir, afinal, por qual crime mesmo ele estava respondendo – meu nome constava no inventário, eu não sabia como, nem o motivo. Pedi para ler o processo, novos documentos foram aparecendo, algumas cartas e cada página descortinava sobre pessoas conhecidas um passado que eu ignorava por completo. O mar não é só o que se vê da praia, veja bem.

Desde então, tive conhecimento de episódios familiares dos quais tomarei a liberdade de contar apenas este simplesmente por que ele virá a público frente ao juiz dentro de alguns dias – ou seja, não há mais motivo de segredo, todos saberão. Além de que ele é apenas um parêntese isolado dentro do enredo complexo do clã. No mais, não tenho interesse em cultivar fantasmas puxando meu pé pelas próximas madrugadas.

A parte em que eu entro nesta história aconteceu há uns dez anos atrás.

Eu estava desembarcando em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Inverno escuro, neblina fechada, eu subindo a serra para ir à casa de um tio-avô que ainda não conhecia. O plano era morar lá para terminar os estudos. Eu tinha por volta de 25 anos – aquela idade em que tudo parece definitivo: ontem você tinha 18, amanhã fará 40 e sua vida precisa desesperadamente de um rumo assertivo – e eu achava que sair de Salvador mudaria algo. Foi uma das tantas vezes em que eu achei que sair de Salvador mudaria alguma coisa. Nunca mudou nada. Mas eu ainda não sabia disso.

A porta do apartamento estava aberta. Encontrei um senhor quieto na varanda lendo o jornal. Uma bengala, uns olhos azuis, um sotaque português e um papagaio com o costume macabro de chamar pelo nome de pessoas que já morreram. O nome do papagaio era Inácio e o nome do meu tio – bem, não vem ao caso. Mas vamos chamá-lo de Tristão. Tristão recebeu-me com fotografias antigas, velhos casos da nossa família e conselhos sobre o sentido da vida. Foi uma tarde agradável, cheia de nomes e datas, dormi no quarto de hóspedes e sonhei em preto e branco. Os pedaços da conversa que eu não compreendia, atribuí ao jeito não-linear que os idosos têm de narrar suas coisas, mas me enganei – foram lacunas que só começaram a fazer sentido agora. Só quem nasceu numa família engendrada como a minha entende que há coisas que jamais serão faladas – todos podem passar gerações explicando sobre como as paredes andam desgastadas, sobre como o telhado já não é o mesmo, sobre como tem chovido nos últimos anos, mas ninguém anuncia que a casa vai cair. Até que a casa caia. No meio de uma frase que me parecia completamente desimportante, ele fez uma pausa para dizer que o que a gente se esforça para esquecer é o que domina a nossa vida. E deixou ficar um silêncio.

Foram apenas 24 horas em Petrópolis. Tudo que ouvi sobre a inutilidade de se tentar escapar do próprio destino parecia fatalmente direcionado a mim e eu decidi voltar para Salvador. Me despedi realmente agradecida. Dentro de algum tempo, soube que Inácio estava chamando o nome de Tristão junto com o de outros falecidos dentro da varanda vazia. Achei triste. E foi a última notícia que tive de lá.

Uma década depois, os advogados bateram na minha porta. Uma convocação para depoimento, perguntas que eu não sabia responder. Há seis meses estou montando este quebra-cabeça.

Pelo que entendi, foi assim.

Tristão nasceu em Portugal durante a guerra. Cresceu na Ilha de Madeira e emigrou ainda rapaz para morar com um tio do Rio de Janeiro. As cartas narram o seu deslumbramento com a cidade. As ondas quebrando no bairro de Laranjeiras, o verão que não terminava nunca – um calor de derreter catedrais, diria Nelson Rodrigues. Mas nada lhe tirava mais a respiração quanto os olhos verdes da esposa do seu tio.

Nós vamos chamá-la de Isolda. E devo dizer que não há uma linha sobre ela nas cartas à família, mas há no depoimento de uma ex-funcionária da casa: uma esposa muito alva com olhos muito verdes. Como num grifo de Machado: “aqueles olhos eram duas esmeraldas nadando em leite”. Segundo a funcionária, foi uma convivência que durou anos – as conversas depois do jantar não terminavam nunca, talvez como em A Missa do Galo: Isolda cogitando trocar os quadros da parede, sugerindo gravuras, ele comentando sobre personagens de ópera – num suplício silencioso, de cortar o coração. O tio não percebia, ocupado demais com negócios, política e amantes. Tristão pensava em fugir com ela. Um dia, de repente, o tio percebeu. Expulsou-o de casa depois de uma surra.

Nunca voltou a Portugal, não saberia como explicar o acontecido à família, seria um escândalo. Não tinha ninguém no Brasil. Morando num quarto de aluguel, Tristão trabalhou por muitos anos e, segundo ele, foram décadas que passaram como dias. Comprou um apartamento em Petrópolis, casou-se tarde e, na época, talvez por quê não tivessem filhos, meu pai, ainda criança, morou com eles por dois anos, onde o batizaram. Quando voltou para casa de minha avó, meu pai contava histórias sobre o papagaio Inácio. Só depois chegou ao apartamento de Tristão um telegrama que mudaria as coisas: anunciava que o velho tio havia falecido com dívidas e que Isolda havia sido despejada da casa de Laranjeiras.

Neste momento, caro leitor, devo fazer uma pausa retórica para perguntar: sabe qual a diferença entre uma novela e uma tragédia? É que, na novela, há um vilão. Já, na tragédia, o vilão é o acaso. São os reveses desbaratados do destino o grande antagonista de uma tragédia. E “o acaso é um deus e um diabo ao mesmo tempo”, não é mesmo? Pois bem.

Ele não dormiu naquela noite. Estava exasperado – escreveu a um amigo próximo. Passou a amanhã escolhendo as palavras. Na mesa do almoço, num tom moderado, leu o telegrama à esposa e sugeriu que acolhessem a tia em casa para que fosse morar com eles. Argumentou que a boa senhora o havia abrigado nos dias de juventude. Que o apartamento era grande. Que seria boa companhia.

Insistiu no assunto, mas sabia que aquilo estava errado. Sabia que era possível, inclusive, ajudar Isolda de alguma outra forma. O amigo, ciente do que estava acontecendo, escreveu desaprovando da ideia. Mas ele não podia escapar à tentação de tê-la novamente à mesa de jantar. Duas esmeraldas nadando em leite. Era a oportunidade de uma vida inteira. A esposa cedeu, inocente de tudo. E a chegada de Isolda iluminou a vida dele como um sol entrando num quarto.

“Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos”. As conversas depois do jantar eram as mesmas. Não eram jovens e estavam vivendo o auge de suas vidas numa fase em que a maioria das pessoas “vive com o verdadeiro rosto na nuca, olhando desesperadamente para trás”. Mas havia, outra vez, um triângulo. E, infelizmente ou felizmente, é dada à natureza feminina uma perspicácia que os homens desconhecem. A mesma paixão que cresceu durante anos invisível sob as barbas do tio de Tristão foi logo percebida pela esposa dele. Ela investigou o passado e a ex-funcionária da casa de Laranjeiras entregou tudo. Uma aberração. Uma imoralidade. Persuasão, Jane Austen, décimo capítulo. Dizem que, naquele momento, a emoção corroeu os nervos da esposa, lhe causou um mal súbito. Morreu pouco depois. Parentes diziam: morreu de desgosto.

E era o segundo escândalo que atravessava a vida dos dois.

Cartas desenrolam um novelo de culpa e tristeza. Eram duas pessoas sozinhas, não tinham ninguém. Continuaram no apartamento de Petrópolis. Os vizinhos comentaram a notícia, as pessoas do bairro espalharam boatos e, com o passar dos anos, o assunto foi caindo no esquecimento. Sempre há intrigas mais frescas e vexatórias a serem contatas. As antigas vão perdendo força e, de resto, a velhice cobre a todos com um manto de dignidade acima de qualquer suspeita. Todo pacato casal de idosos merece simplesmente ser deixado em paz.

Eles viveram juntos durante trinta anos.

Ele morreu em 2009 e, ela, em 2017. Na época em que estive lá, conheci Isolda na hora do jantar – mais idosa do que ele, mais disposta do que eu. Nunca oficializaram a união e até hoje há problemas com o inventário por causa disso. Perguntei por Inácio, o papagaio: depois da morte dela, teimava em voar sem destino pelas redondezas e, um dia, não voltou mais. Dizem que chamou tanto pelos mortos que os fantasmas vieram buscar. Ainda não sei exatamente por que apareci no testamento como herdeira do apartamento de Petrópolis e certamente o juiz irá questionar qual o meu laço com o casal em vida – será ridículo informar que foram apenas 24 horas de convivência, mas é a verdade.

Bem, ao menos até onde sei, esta é a história do meu tio Tristão. A história dos outros parentes eu não posso contar, mas são simplesmente inacreditáveis.

Às vezes, me pergunto se as coisas poderiam ter sido diferentes pra eles. E se ele tivesse voltado sozinho para a Ilha de Madeira? E se se aquele telegrama nunca tivesse chegado até Petrópolis? Jamais saberemos.

Confesso que, desde que esta Caixa de Pandora foi aberta, o que mais tem comovido esta minha alma irremediavelmente inclinada ao romanesco tem sido reconhecer o enredo dos clássicos em memórias de família. Hobin Hood, Os Maias, Os Belos e os Malditos, Tristão e Isolda. Como se tudo que já li na vida fosse um presságio da minha ascendência e não fosse necessário à ficção inventar mais nada, já que nenhuma criação pôde superar a realidade.

“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que os meus pais faziam antes que eu nascesse”. “Venho de longe, de uma pesada ancestralidade”. “As estirpes condenadas a cem anos de solidão não têm uma segunda oportunidade sobre a terra”. “Infelizmente, todo poder do mundo não pode mudar um destino”.

É isso.

Sinto que todos os meus dramas estão justificados. A minha genética é pura literatura.

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“Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas te digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, a criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. (…) Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. (…) Se tirassem meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para pessoas. (…) Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá.(…) Esta cidade foi conseguida pela prece. Dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento – Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. – Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a idéia que faço da eternidade. Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna.”

(Clarice Lispector / A Legião Estrangeira, 1964, p. 162-167)

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“As crianças cresciam
admiravelmente em torno deles.
E, como a uma borboleta,
Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele nunca mais fosse seu.”

(Lispector / Amor, Laços de Família, 1960)

 

 

Em dois anos, eu fui mãe duas vezes. E acho que a principal diferença entre as duas experiências – o que talvez valha para todas as experiências que se sucedem na vida da gente – é que, na segunda vez, eu já sabia que ia passar.

O medo ia passar. A euforia ia passar. Saber que tudo vai passar faz você se sentir mais seguro e pessoas seguras não ficam o tempo todo tentando ser perfeitas.

Dar um banho na minha primeira bebê significava comprar seis garrafas de água mineral, ferver tudo numa panela nova, despejar numa banheira esterilizada e ficar medindo a temperatura até ela chegar a 37 graus. Minha segunda bebê toma banho até na pia de lavar roupa. Minha primeira bebê nasceu num berço que incluía baú, cama extra, cortinado, quatro posições e sete almofadas. Minha segunda bebê dorme num cercado no meio da sala. Os amigos brincam que, se eu tivesse uma terceira bebê, ela ia dormir na casa do cachorro, mas isso não é verdade. Eu nem tenho um cachorro. Saber que nada vai durar muito tempo faz a gente focar no que realmente interessa.

Às vezes, eu me pego pensando em como seria se a gente pudesse viver cada fase da vida duas vezes. Viver a adolescência de novo, o início de carreira de novo, aquela viagem de novo. Viver de novo cada momento decisivo só que, dessa vez, sabendo que vão passar. Na pressa de aproveitar cada minuto, quem iria cumprir todas as regras? Quem iria perder tempo tentando ser tudo que os outros esperam?

Minhas meninas brincam alheias a todas as diferenças entre elas. Uma no berço caro, outra no cercado, tão unidas e completamente felizes. Eu fico olhando de longe e reparo em como tudo em volta está uma desordem. A casa, a vida, tudo desalinhado. Mas, se eu fechar o foco, vou ver apenas uma criança dormindo no colo da outra. Um desenho na sola do sapato, um dinossauro na geladeira. De perto, os dias são bonitos. Mesmo nesta fase de desajuste, eu não gostaria de estar em outro lugar.

Eu realmente não sei por qual período da vida você está passando, mas talvez também não esteja sendo fácil. Não importa, apenas feche o foco. Traga o seu momento pra mais perto. Como a uma borboleta, segure o instante entre os dedos. Felizmente ou infelizmente, isso também vai passar.

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“Olhando para ele na praia até você poderia entender a graça dele para as moças: era bonito, mas logo ficaria feio. Isso o deixava ainda mais bonito. Era muito branco e trazia a pele acabada de sol e álcool e privação de sono, a cara sempre meio inchada de ressaca. Tinha sardas nos ombros e pele já fina e flácida logo abaixo do pescoço, de um jeito que poucos têm aos trinta. Tinha rugas ao redor dos olhos, também muito antes da idade, e uma espinha ou outra. Tudo nele era deslocado. Parecia além e aquém de seus anos, feio e bonito. Parecia mal tratado, uma pessoa que não se preservava. Enquanto todos se guardavam numa mesquinharia sem fim, ele se gastava. Era uma beleza que seria arruinada em cinco anos, você queria estar ali para ver.”

(Juliana Cunha / Reação no Mundo)

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“Mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.”

(Caio Fernando Abreu / Além do Ponto)

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Depois do banho, minha avó paterna penteia os cabelos, se perfuma e senta na poltrona de sempre. E sorri pra mim. Ela não faz ideia de quem sou eu, não reconhece nem a casa onde mora, mas me cumprimenta como se fosse uma nova amiga: olá, como vai você? Se eu puxar assunto, é capaz de conversar sobre qualquer coisa – pergunta como vai a minha família. Diz que eu sou muito bonita e que meus sapatos parecem sapatos de boneca. Anuncia que está preocupada com assuntos do instituto, que precisa ir à rua resolver alguns problemas. Pergunta se eu já almocei. Depois se irrita: mas que diabos, por que eles ainda não vieram fechar essas janelas? Há horas em que minha avó fala coisas desconexas, pergunta por pessoas que já morreram, não sabe onde está. Mas nunca perdeu a forma de ordenar que fechassem as janelas. Ela vai até o quarto e, na volta, apresenta-se a mim novamente – olá, como vai você? A mesma forma de estender a mão com firmeza, de tomar a iniciativa de se apresentar a qualquer desconhecido. Inconfundível. Acho que é isso o que chamam de alma. Eu respondo que estou muito bem, obrigada. E ela sorri simpática, me olhando com seus olhos azuis. E eu acho curioso como o tempo garimpa o nosso melhor – minha avó esqueceu de tudo, menos da própria altivez. Levanta o olhar, estuda a casa, pergunta pelos empregados. Questiona a demora das coisas, fala sobre o trabalho dela. Diz que precisa sair, elogia os meus sapatos. E não descansa enquanto não fecharem as janelas.

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Eu estou fazendo um curso de História da Antiguidade. O curso é bom, mas a verdade é que tanta informação acaba apertando a minha mente. O principal material didático das aulas é um livro com mais de mil páginas redigidas por uns 40 autores diferentes. Uma loucura. Querem conhecer uma publicação que mistura grego, hebraico e aramaico no mesmo prefácio? Senhores e senhoras, apresento-lhes: a Bíblia.

Nunca ouvi falar de nenhuma obra neste mundo que tenha levado mil e seiscentos anos para ficar pronta, só ela. Foi escrita por gente de todo tipo: homens e mulheres, ricos e pobres, reis e presidiários, judeus e católicos. A maioria nem se conheceu, alguns se detestavam. Uma Babel.

Apesar de tudo, estou gostando do curso. Ainda que eu passe boa parte da aula balançando a cabeça bovinamente, esperando por um milagre. Tenho péssima memória e nunca sei se quem ergueu o cajado foi Abraão ou Simão ou Salomão, se quem foi para o Egito foi Jacó ou José ou Josué, quem matou o irmão de quem, se o deserto fica na Judeia ou na Galileia ou na Arimateia ou em nenhuma das alternativas anteriores, muito pelo contrário. E o que dizer daquelas histórias fabulosas de gente abrindo o mar, movendo montanha, fazendo arca e derrotando gigante? Confundo com Titanic, com Super Man, com Godzila, com King Kong. Spielberg, me abraça.

O fato é que passei os últimos meses tentando decorar nomes e datas e lugares. E o enredo das narrativas mais desbaratadas. Aí, outro dia, a professora perguntou à turma qual era a frase que mais se repetia na Bíblia. A sentença que aparecia 366 vezes, simples e direta, em todas as histórias. Eu não fazia a menor ideia.

E a frase era: “Não tenha medo”. Em todos os enredos, nos três idiomas: “Não tenha medo”.

Às vezes, a gente não repara no que realmente interessa.

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No dia em que eu decidi ir embora de Salvador, passava na tv um programa sobre as ondas de rádio. Falava que os sinais de celular, de aviões, programas de tv, tudo transita por ondas invisíveis que, muitas vezes, se perdem do curso e ficam pairando no ar. E que, no futuro, com uma antena, será possível captar dados eletrônicos do passado que ficaram perdidos no tempo e no espaço. Imaginei a arqueologia do futuro tentando colar este quebra-cabeça de átomos: palavras soltas, notícias, canções, frases ditas há anos atrás, assim, voltando no meio de expediente. Num futuro longínquo, que nem imaginamos ainda, o passado ecoando de novo e de novo e de novo.

Hoje, talvez seja exatamente essa a nossa relação, Salvador. O contato de uma antena distante, sem nenhuma sintonia. Aguda, incompreendida, replicando mensagens loucas – buzinas, britadeiras, sirenes, estampidos. Um grande desencontro. Vozes do passado, que vêm e vão, aos berros.

Oh, minha terra, céu azul da minha infância. Meu amor despedaçado, repisado e dolorido. Quantas vezes eu te odiei um pouco, Salvador. Você que me faz igual a todo mundo, por que eu também sou de algum lugar e levo esse lugar comigo. O que fazer desta linha cruzada, dessa relação mal resolvida com uma cidade como se ela fosse um mal elemento a quem já se amou muito e, um dia, se decide abandonar por que, céus, o que mais eu poderia fazer? Eu, que nunca a preferi por causa das suas belezas. Nem pela sua pele de asfalto gasto, nem pela sua tez de muro sujo, tampouco a amei turística e enquadrada por Verger, mas sim como se ama a um filho feio ou a um pai triste, alguém que é bom o suficiente só por ser o seu igual, sangue do mesmo sangue. Mas Salvador pisou demais, forçou demais, abusou. Me comprimindo até o limite, dura, difícil. Cuspindo fuligem e gás carbônico, eu arranquei Salvador de mim. Doando miçangas, perdendo o sotaque – me esvaziando, abrindo caminho, deixando a mala mais leve e a alma mais livre – tudo isso, meu Deus, pra quê? Pra quê?

Salvador sempre volta. E eu sinto um elevador de gelo subindo por todos os meus andares cada vez que eu ouço falar. E um ciúme louco de todo mundo que a transita mais do que eu. Quando há uma foto na rua, uma notícia no jornal, uma música ao longe – “Eu sou o cheiro dos livros desesperados…” – e, então, fugir e mentir e negar esse laço mal acabado sempre me parece a coisa mais covarde que eu poderia fazer.

Salvador me dói. Animal cabeceando as grades da jaula, mesmo quando a porta está aberta. Como se eu fosse um saquinho de gudes de metal que se desintegram em mil partículas pelo mundo afora, para serem surpreendidas por um ímã repentino e retornarem autônomas, teleguiadas, derrubando tudo pelo caminho e se amontoando outra vez sobre o mesmo ponto, sem conseguir se rearrumarem na posição anterior. Salvador me desorganiza. Refazenda. Reconvexo.

Mas alguma coisa se quebrou e, não, eu não moro mais lá. Mesmo estando em Salvador, eu sou alguém que está de passagem, que está voltando continuamente, sem chegar nunca. Numa esteira rolante, no fluxo contrário, andando, andando, sem avançar. Dentro do táxi, com o coração aos pulos. Na direção errada. Cada vez mais distante.

Eu espero por Salvador em quartos de hotéis de qualquer outro lugar. E Salvador me chega, às vezes, assim, pelas ondas do rádio. Em frases soltas, palavras dispersas – Meca, Zion, Itabira, Macondo. Sombra da voz da matriarca da Roma Negra. Aonde o mar arrebenta em mim. Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando. Oh, bruta flor do querer.

Eu nunca saí de lá.

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Não era pra ser ela. Era pra ser uma senhora grande, negra, poderosa, com uma história de vida sofrida num subúrbio do Brooklin e, pelo menos, uns 20 anos de jazz numa garagem suja antes do estrelato. Mas a dona da voz no rádio nem era americana, nem era negra, nem era nada do que a gente imaginava, do que a gente queria. Uma inadequada.

Acho que a gente só deu alguma atenção depois, por que ela chorava de amor no chão da cozinha. Por que era a garota que esperava num quarto de hotel a visita que nunca chegava, por que não aceitava ajuda dizendo que não, não, não queria se salvar. Você já conheceu alguém assim? Eu também conheço. Também tenho uma dessas morando lá em casa.

E o que era só uma personagem de tabloide estrangeiro foi ficando próxima, foi se materializando numa figura problemática, devotada e interessantíssima (redundância tripla?) que a gente tem vontade de abraçar, levar pra casa, botar colo e ninar dizendo – ah, eu sei que dói, querida, eu te entendo. Como ela mesma, levando torradas com queijo para os fotógrafos que pernoitavam na sua porta, aguardando pelo próximo escândalo. Ou, durante o concerto no Brasil, quando não conseguia acompanhar as músicas e, entre frases desconexas, repetia: oh, me desculpem por esta pequena interrupção…

Eu fico feliz em saber que, na minha geração, houve Amy Winehouse. Num mundo de Sandys, Britneys e Beyoncés meigas e bregas, mais objetos que sujeitos, mais vulgares que ousadas, houve alguém pra fazer música de qualidade e imortalizar uma das melhores frases do pop – you know, I’m no good. Por que a gente nunca foi mesmo, Amy. Mas faltava quem dissesse isso num microfone a sério, sem gritinhos histéricos nem rebolados contorcionistas. Ah, como faltava.

Acho que tudo era tão bom por que era espontâneo – e o que não é programado, às vezes, foge do controle. Já vejo a sua morte sair nos jornais, pais de família bradando “era uma drogada, onde o mundo vai parar com jovens como esses?”, todos com o controle remoto numa mão e o copo de uísque na outra. Deve ser difícil ser o purgatório de toda a loucura humana. Você não era a pessoa certa, não era a negra grande e poderosa que a gente esperava, mas vai fazer tanta falta. O que me consola é que, dessa vez, os fotógrafos vão ficar sem torradas. E você nem vai precisar pedir desculpas a tanta gente besta e sem talento por mais esta pequena interrupção.

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